Machado de Assis gostava de interpelar a loucura dos homens. No “Memórias póstumas de Brás Cubas”, de 1881, põe em ação o Quincas Borba, figura interessantíssima de filósofo errante, sempre em transição, o que lhe permite, com a mesma serenidade, passar da miséria à abundância, da razão ao desatino. Pensador erradio, inventa, pra sobreviver, um sistema filosófico ao qual dá o nome de “Humanitismo”, espécie de paródia genial de uma vertente do evolucionismo que, no limite, apregoa a sobrevivência do mais forte, o vencedor, a quem, por ocasião da consumação dos tempos, serão oferecidas as batatas. Brás Cubas, este exemplo acabado de cinismo e desfaçatez, a quem apresenta a sua cosmogonia, não lhe dá, inicialmente, muita bola, limitando-se a matar-lhe a fome servindo-lhe um lauto almoço.
Não saberia dizer se o Quincas Borba é o primeiro louco a povoar as páginas machadianas. Talvez seja, em seu vaguear eterno, o mais recorrente.
Machado chega a ser cruel na abordagem das misérias humanas. É muito fina a sua ironia; é arguto o seu olhar. E, repitamos, cruel. Tanto é assim que dará ao seu pobre lunático uma sobrevida, trazendo-o de volta, mais doido ainda, porque agora duplicado em homem e cachorro, nas páginas do “Quincas Borba”, de 1891. Cada leitor haverá de decidir a quem caberá a proeminência do título do romance, se ao homem ou ao seu pobre, e homônimo, canino. O fato é que ambos desfilam, pelas ruas de Barbacena (MG) e do Rio de Janeiro, a sua patetice trágica, que é também a do Brasil daqueles meados do século XIX. Igualmente errante, escravocrata, violenta, eis uma sociedade atravessada pela superficialidade e ociosidade da sua elite, igualmente em trânsito, flutuante, indecisa entre o estamento e a classe social, sem saber bem a qual dos dois servir, sem saber aonde dar.
E a loucura se espalha. Temos o Pedro Rubião de Alvarenga, um pobre e medíocre professor, também de Barbacena, que transitará, subitamente, da pobreza à riqueza ao ser nomeado herdeiro universal dos bens do Quincas Borba (o homem), sob a condição pétrea, registrada em testamento, de cuidar e tratar muito bem do seu Quincas Borba (o cachorro). Rubião mergulha no abismo por amor. O seu desatino é Sofia, a bela esposa de Cristiano Palha, este exemplo acabado de crápula. Tão inescrupuloso é que, ao perceber o fascínio e poder de sedução exercidos pela consorte sobre o coitado do Rubião, aproveita-se da situação para, lenta e persistentemente, extorquir-lhe todo o capital que este herdara do defunto filósofo. Rubião, porque chega, por momentos fugazes, a ter consciência da própria loucura, talvez seja o doido mais trágico da nossa literatura. De volta às origens, irremediavelmente desprovido das luzes, desprezado em seu amor, ainda assim imagina-se imperador – “Napoleão!” – ao lado da imperatriz – Sofia! – quando, em verdade, o que lhe restou foi miséria, fome, frio, frio do qual não lhe protegem as vestes andrajosas, insuficientes para cobrir-lhe em suas andanças insanas pelas noites e ruas da sua Barbacena. Ao morrer tem, ao seu lado, o pobre e fiel e famélico Quincas Borba, cujos uivos se farão ouvir por aquelas mesmas ruas, em insana subsistência e em busca inútil do dono, agora mergulhado no nada final, , ao longo de três dias e noites.
Outro doido famoso do universo machadiano é o Simão Bacamarte, criação definitiva de “O alienista”, de 1882. Trata-se de um tirano, cujo poder erige-se em bases advindas do saber e do estudo. Em sua desmedida autoridade, transforma a pequena Itaguaí, cidade onde reside, em laboratório e campo para as suas pesquisas. Dedicado ao estudo da patologia cerebral quer ser, simultaneamente, sujeito e objeto da ciência à qual dedica toda a sua energia intelectual. E sai internando todo mundo na sua Casa Verde, nome dado ao hospício do lugar. Tudo conduzido, claro, sob a mais restrita obediência aos critérios da observação científica. Pergunta: não seria o Simão Bacamarte a expressão de um novo tipo de loucura, a que poderíamos chamar, até em respeito ao insigne mentecapto, de “loucura epistemológica”?
Outra criação famosa é o Bentinho, do “Dom Casmurro”, de 1899. Vizinho, amigo de infância, namorado, noivo e, finalmente, marido da eterna Capitu, a detentora de olhos de cigana, e que são, ainda, “oblíquos e dissimulados”, sempre me passou a impressão de ser, ao seu modo, meio louco. É, com certeza, inseguro, sem pertinácia, sem vontade. Capitu é o seu ponto de apoio e isso desde a mais tenra infância. É doente de ciúmes. É absenteísta. Há, neste ponto, uma passagem da narrativa, belíssima, em que o pobre ex- seminarista afirma faltar a si mesmo. Tudo somado, eis um pobre coitado a transitar em tresloucado universo feito de sombras e de pensamentos, clivado por medos e ciúmes e desconfianças e loucuras. Eis a argamassa perfeita com a qual será erguido e sedimentado o maior mistério da literatura nacional, a desafiar – parece-me que até o fim dos séculos – a curiosidade em torno da existência, ou não, de um portentoso par de chifres a enfeitar, pelo resto dos tempos, a transtornada cabeça do casmurro Bentinho. Interessante é que, apesar da persistência e da dúvida quanto ao adultério de Capitu, não seria essa a temática fulcral do famoso romance. Que tal pensar na possibilidade da “dúvida” como o eixo da narrativa? Dúvida em relação à fidelidade de Capitu, certamente. Mas, ainda, em relação à vida – esta eterna dissimulada, sempre à espreita, pronta pra nos abandonar a qualquer momento. Dúvida em relação ao Brasil, cujas elites, ontem como hoje, viram as costas para o país e traem o seu povo. Dúvida quanto ao fato de sermos, muito provavelmente, uma eterna Casa Verde, povoada por malucos e genocidas de variados matizes e espectros. Dúvidas, dúvidas.
Machado de Assis é o mundo: atual, tristemente atual. Gosto de relê-lo para me fazer perguntas, muito mais do que para encontrar respostas. Ao errar por sua obra, quedo-me, impressionado, ante o vigor e a permanência das reflexões e percepções ali inscritas. Vejo ali a nossa loucura, a nossa desrazão. Ali encontro os que anteciparam o nosso “Simão Bacamarte” contemporâneo. Ali estão os prenúncios da nossa Casa Verde destroçada, atual, enlouquecida e asfixiada. Eis ali a nossa tragédia cotidiana, o desvario de um país que optou por ser nada, transformado em pária que foi, andrajoso que está, a desfilar, desatinado, a sua miséria sanitária e política. Somos, com efeito, um fantasma geopolítico a assombrar o mundo.
O Brás Cubas, do Machado, estava tristemente certo ao proclamar: “Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria.”