(Des)Ânimo e Política

Por Jéssica Inanna

(Des)Ânimo e Política – por Jéssica Inanna

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Imagem: reprodução da internet

Um desabafo sobre porque perdi o ânimo em relação à política (concreta, não eleitoral). Porque os velhos problemas no movimento sempre voltam, mas de ‘cara nova’, com outra forma. Apesar de toda a energia que você gastou para combater as velhas ideias, elas ressurgem, como ideias novas-velhas.

Um exemplo, para ser didática. Há uma década ou mais, era comum, na esquerda, a ideologia de que as lutas dos setores oprimidos (movimento feminista, LGBTQIA+, negro, etc) são pequeno-burguesas, individualistas, etc, porque não defendem os “interesses gerais da classe”. É uma evidente contradição: não há nada mais individualista do que acusar que a luta do outro é individualista.

(Aliás, o próprio conceito de “interesses gerais da classe” é uma falácia. O que seriam? Aumento salarial? Carga horária de 8h? E como fica quem tem trabalho informal, artesanal ou como camelô, catadoras de recicláveis, etc? Entendo que existem “interesses gerais da classe”, mas é raro que eles se transformem em lutas concretas. Na prática, é apenas uma retórica para invalidar a luta que não interessa a alguém.)

Ao ver essa atitude de setores de esquerda, algumas pessoas elaboraram a ideia de que a luta contra as opressões é (deve ser) exclusiva dos setores oprimidos. Agora, por exemplo, nós, pessoas trans, não temos nenhuma chance contra todo o CIStema por nós mesmas. Sem aliadas, não teríamos direitos importantes como, por exemplo, a mudança de nome e sexo no registro civil.

Essa atitude, por sua vez, reforçou o pré-conceito em parte da esquerda que os setores oprimidos são ‘pequeno-burgueses’. Como essa ideia perdeu a moral, ela ressurgiu sob outra forma: o fantasma do ‘pós-modernismo’. Alguém pode apontar que a crítica ‘original’ e ‘teórica’ ao pós-modernismo não defende (ao menos explicitamente) que as lutas dos setores oprimidos são ‘pequeno-burguesas’. O problema é que o conceito de ‘pós-modernismo’ foi esvaziado de sua essência ‘original’ e, na prática, a teoria ‘original’ apenas serve para ‘invalidar’ as críticas.

Isso, de novo, também reforçou, em parte dos setores oprimidos, a ideia de que ‘os opressores’ não podem fazer parte da luta dos oprimidos. Mas, novamente, como essa ideia perdeu força, ela ressurgiu sob outra forma: a defesa do ‘lugar-de-fala’. Novamente, não se trata do conceito ‘original’ e ‘teórico’ de lugar-de-fala. Mas também nesse caso a essência ‘original’ se transformou em mera aparência.

(Deixo apenas um contraexemplo óbvio ao ‘lugar-de-fala’: o BBB. O que é também uma evidência de que os problemas que aponto aqui acontece com quem formalmente não faz parte de um movimento ou corrente.)

De novo, setores de esquerda enxergaram isso como confirmação do seu pré-conceito sobre o movimento estar possuído pelo ‘fantasma do pós-modernismo’, e daí ‘inventaram’ uma nova palavra para encaixar a velha ideia: o fantasma do ‘identitarismo’.

Bom, esse é só um exemplo. Vejo o mesmo padrão se repetir com cada ideologia opressora. E o desenvolvimento dessas ideias é desigual e combinado. As velhas-velhas ideias, ainda que formalmente ‘superadas’, continuam a existir. Ideias velhas-velhas e novas-velhas se misturam, se fundem, se confundem. E aquele argumento absurdo, preconceituoso e raso que você ouviu 10 anos atrás de quem defendia a ideia velha-velha, vira e mexe você ouve sair da boca de quem defende a ideia nova-velha. E o argumento novo-velho se espalha como penas ao vento, mesmo entre pessoas que (aparentemente) rejeitam as ideias velhas-velhas. Isso porque, junto dessa nova-velha ideia, aparece toda uma retórica, um rodeio argumentativo gigante para que ela não pareça velha. Como se plantassem um lindo jardim sobre um aterro sanitário.

(O ‘lindo jardim’ é, por exemplo, a ‘teoria séria e coerente’ sobre pós-modernismo, misturada com argumentos das teorias ‘superadas’, com senso comum, etc).

Pra piorar, o que acontece com a ideologia, também ocorre com a prática. Porque as práticas opressoras (silenciamento, deslegitimação, etc) são apenas o outro lado da moeda das ideologias opressoras. E é muito difícil se sujeitar ao desgaste (emocional, mental e de tempo) que é necessário ao enfrentar esses problemas novos-velhos. É muito cansativo ter de responder, de novo e de novo, à acusação que você é individualista ou pequeno-burguesa. (Será que eu estou loop temporal bizarro? Ou numa Matrix?)

E veja que isso não acontece só com ideologias opressoras. Parece-me ser uma característica quase constante na história das sociedades de classes, devido à influência das ideologias hegemônicas sobre todas as pessoas e estruturas. Isso faz com que essas ideias se renovem e se adaptem, tomando inúmeras aparências, inclusive aparência de serem contra-hegemônicas. A história dos movimentos socialistas está cheia de exemplos disso.

Não sei se esse é um problema incontornável. Mas sei que minha saúde mental tem limite (como a de qualquer pessoa).