O contragolpe da elite

Por Eugênio Aragão; Via Robson Sávio Reis Souza

O contragolpe da elite – por Eugênio Aragão; Via Robson Sávio Reis Souza

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Imagem: reprodução da internet

Por: Eugênio Aragão (jurista; foi membro do Ministério Público Federal de 1987 até 2017 e ministro da Justiça em 2016. É professor titular de direito internacional da Universidade de Brasília).

_Mas uma coisa é certa: com o humilhante acordo – o contragolpe da elite – o panorama político mudou e a casa grande volta a ser um player respeitável no jogo eleitoral de 2022, concentrando seu poder de fogo contra os adversários de sempre: os trabalhadores e oprimidos do Brasil._

O mercado acordou hoje eufórico. A bolsa disparou e o dólar recuou. Céu de brigadeiro até perder de vista. O que há poucos dias parecia impossível tornou-se real: conseguiram colocar o gênio bagunceiro – o Amok brasileiro – de volta na sua garrafa. E de forma humilhante.

De certo, para nós comuns dos mortais, só parte da história é cognoscível. A outra, muito provavelmente menos republicana, ficará para a especulação.

O dia 7 de setembro era para ser uma data da virada. Apoiadores de todos os rincões do Brasil encheram boa parte da Esplanada dos Ministérios em Brasília e a Avenida Paulista em São Paulo para ouvirem seu líder, o capitão-presidente Bolsonaro. Vendo tamanha turba em júbilo, não se conteve e distribuiu rasteiras para seus supostos inimigos, ministros do STF.

Falou grosso. Disse que não cumpriria mais decisões advindas do Ministro Alexandre de Moraes, a quem chamou de “canalha”. A massa foi a êxtase. E, para dar respaldo às ameaças do líder, empresários organizadores das manifestações bloquearam a Esplanada dos Ministérios em Brasília com seus caminhões e desafiaram a polícia a deixarem-nos passar à Praça dos Três Poderes, onde pretendiam invadir o STF.

O jogo de empurra entre a irada turba e as forças de segurança causou calafrios aos democratas no País. Havia medo real de perda de controle e de sucumbir, a política, à violência em larga escala, com possível intervenção das Forças Armadas na chamada “garantia da lei e da ordem”. Tudo parecia calculado.

Bolsonaro, acreditava-se, estava forçando, mais uma vez, os limites do estado de direito para instalar uma ditadura no país. E o movimento dos empresários do agronegócio a promoverem um lock-out da logística de transporte Brasil afora encaixava-se nessa tática.

Pretendia-se paralisar o país para submeter as instituições à máxima pressão.

Foi um jogo do tudo ou nada. Com essa intentona, Bolsonaro despejou à lixeira toda a política econômica de Paulo Guedes. O Congresso não parecia mais disposto a apoiar um governo tresloucado. O judiciário que vinha negociando o parcelamento dos precatórios com dívidas da União, abandonou o trato. A economia estava indo ladeira abaixo sem freios. O mercado reagia com extremo mau humor, ainda mais nervoso com os dados sobre a marcha da inflação em direção aos dois dígitos anuais.

Acendeu-se a luz vermelha. Bolsonaro foi convencido a pedir a seus apoiadores que abandonassem o bloqueio de rodovias para permitir que suprimentos chegassem a seus destinos. O recuo causou mal estar e incredulidade. Muitos empresários não queriam ceder antes de atingir seu objetivo: forçar o STF a uma mudança de rumo no tratamento dos crimes praticados por gente do governo e da política indígena, com estabelecimento de um marco temporal para a ocupação territorial tradicional.

Mas a pressão da economia sobre o governo era imensa. Esperava-se que Bolsonaro determinasse, se necessário, o uso da força, para controlar sua turba.

Eis que, no meio do rebuliço, surge o salvador: o mestre em golpes políticos, Michel Temer. Um Bolsonaro desesperado com a perda de controle sobre a massa de seus apoiadores urgiu sua vinda a Brasília para negociar uma trégua com o legislativo e o judiciário. E, no final da tarde do dia 9 de setembro, no meio da disputa de espaço em rodovias e na Esplanada dos Ministérios, acontece o inusitado: Bolsonaro manda publicar no Diário Oficial da União uma “Mensagem à Nação” em que desdiz tudo que dissera do palanque perante as massas: não queria confronto com os outros poderes que devem ser harmônicos entre si, as palavras de agressão teriam sido proferidas no “calor dos acontecimentos”, etc. etc.

A turba que marchara para Brasília e São Paulo ficou perdida. Afinal, não haveria mais ruptura? Seu líder fora cooptado “pelo sistema”? Ninguém parecia entender a abrupta mudança de rumos. Aliás, sequer os ministros agredidos queriam dar crédito às palavras de desculpas de Bolsonaro.

Mas passadas as horas, vê-se com mais clareza o que aconteceu: Bolsonaro que foi útil para derrotar a esquerda em 2018 estava se tornando um estorvo não só na condução do país, mas sobretudo na perspectiva das eleições presidenciais de 2022. Quanto pior governasse, mais o campo da esquerda ia se robustecendo, não deixando espaço para um conservador liberal do mercado se tornar ungido nas urnas. Sabedores de que mais um mandato para Bolsonaro seria um desastre para o país que consideram só seu, os representantes do capital também não estariam dispostos a embarcar na canoa da oposição progressista. Ao mesmo tempo, as chances de uma “terceira via” pareciam muito remotas.

Precisava-se, pois, neutralizar Bolsonaro para enfrentar a esquerda.
Com sua mensagem à nação, o presidente-capitão perdeu enorme capital político. Decepcionou sua base e, aparentemente, não recebeu nada em troca. Seus supostos contraentes no STF não foram obrigados a ceder em nada e, no Congresso, pouca ou nenhuma credibilidade lhe restava. Talvez seja cedo para dizer que Bolsonaro se tornou um defunto político, mas que saiu muito desgastado desse episódio, disso não há dúvida.

O que teria feito Bolsonaro desistir do confronto? Aqui entra a especulação, mas é fato noticiado que havia movimentação frenética de atores políticos em Brasília. Os presidentes do Senado e da Câmara dos Deputados se reuniram com o decano do STF. Buscavam desesperadamente uma saída para a crise inaugurada com as agressões presidenciais ao STF.

E foi aí que entrou Michel Temer.
O ex-presidente da República que golpeara Dilma Rousseff passou o dia em Brasília, para cá e para lá. Queria apascentar. Afinal, é ele o padrinho de Alexandre de Moraes, o principal alvo dos desaforos indecorosos de Bolsonaro. Foi Temer quem nomeou o ministro para o STF. E conseguiu o improvável: fez Bolsonaro ligar para o magistrado, como se fosse para pedir desculpas. O cão doido voltava para a coleira. O mercado, a elite, a casa grande, a Avenida Faria Lima – seja como se queira denominar esse ser etéreo que mantém as rédeas do país desde tempos imemoriais – suspirava aliviada: tinha vencido a fúria do gênio imprevisível.

Em troca de que? Essa é a pergunta que não quer calar. De certo, Bolsonaro sabia que tinha se metido numa enrascada. O que fizera do palanque era, como dizem os alemães, “starker Tobak” – tabaco forte. Não passaria incólume pela ira de seus poderosos adversários. Enquanto aumentavam as pressões por iminente abertura de processo de impeachment, circulavam notícias de reações no âmbito do TSE que pudessem tornar o presidente-capitão inelegível em 2022.

Mas, o pior de tudo, o cerco aos fanáticos conselheiros de Bolsonaro ia se fechando, falando-se em possível prisão dos filhos presidenciais. Dizem que Bolsonaro ficou sem dormir por duas noites até jogar a toalha.

A dúvida que remanesce é se o presidente-capitão obteve alguma garantia de que, deixando de acirrar o ambiente político, poderia contar com a leniência da justiça para consigo e seus filhos. Essa seria a parte pouco republicana do acordo “com Supremo e com tudo” com que Michel Temer se notabilizou. Se houve ou não, só pode ser objeto de conjectura. Os próximos dias dirão. Há que se ver se a CPI da COVID abrandará seu tom no relatório final; se o ministro Alexandre de Moraes refluirá em suas diligências contra os organizadores da turba antidemocrática; se o STF poupará Augusto Aras dos pedidos de investigação por prevaricação a si atribuída. Mas é compreensível a incredulidade sobre uma gratuita desistência de Bolsonaro à via do confronto. É compreensível também que não se queira dar fé à sustentabilidade do acordo – ou contragolpe – engendrado por Michel Temer.

Por ora, o que se tem apenas é um Bolsonaro humilhado com um exército de apoiadores perdidos feito baratas tontas.

E o estamento militar? Um curioso silêncio tomou conta dos eloquentes fardados de outros momentos. Sabem muito bem que a briga agora é de cachorro grande. Não estão mais antagonizando com a turma da esquerda civilizada. A casa grande soube fazer valer sua autoridade. Afinal, não se dá conta, neste país, de qualquer episódio de rebeldia de capitães do mato contra os senhores. Os militares sabem muito bem que a alternativa ao acordo – ou contragolpe – é a vitória das forças progressistas em 2022. Se querem evitá-la – e o querem muito mais até do que uma vitória de Bolsonaro – precisam deixar agora os profissionais trabalhar. E isso passa pela neutralização do capitão-presidente, para que a improvável “terceira via” se torne primeira e, quiçá, consiga derrotar, num confronto direto, o bicho de sete cabeças, o ex-presidente Lula.

A segurança de que a esquerda não volta ao poder, para o estamento militar, vale até a perda de umas boquinhas. E ninguém sabe se, no trato, um jabá não tenha sido incluído. Mas uma coisa é certa: com o humilhante acordo – o contragolpe da elite – o panorama político mudou e a casa grande volta a ser um player respeitável no jogo eleitoral de 2022, concentrando seu poder de fogo contra os adversários de sempre: os trabalhadores e oprimidos do Brasil.

Não haverá frente única contra Bolsonaro. Haverá frente única contra a esquerda.