Por quase um século, as democracias ocidentais desenvolveram um modelo de regulação do rádio, da TV e, em alguns casos, também dos jornais impressos. É certo que a escassez de frequências era uma das justificativas para a regulação da radiodifusão, mas toda a racionalidade do modelo de regulação e do modelo de desenvolvimento dos sistemas públicos de comunicação partia do princípio de que concentração de poder na comunicação afeta diretamente a democracia.
Ante esse fato, criaram-se modelos de legislação, regulação e políticas públicas que tinham como foco garantir pluralismo e diversidade, proteger e promover a liberdade de expressão e equilibrar a liberdade de expressão com outros direitos fundamentais. Neste contexto, incitação à violência e promoção da subversão da ordem democrática sempre foram proibidos em grande parte das democracias consolidadas.
No desenvolvimento da Internet, muita gente achou que a questão de concentração de poder estava superada. À medida que as redes sociais foram ganhando mais poder, o que ficou nítido a partir especialmente a partir de 2010, foi ficando evidente para todos os que vinham do debate da regulação das comunicações que o poder que estava se concentrando ali tinha efeito muito maior que o econômico. Era preciso se antecipar, para evitar chegar ao ponto em que a esfera pública estivesse completamente dominada por poucas empresas. Mas o temor do poder de censura estatal e da tentação autoritária de governos fez (e faz) muitas organizações da sociedade civil e pesquisadores acharem que não valia a pena apostar na regulação pública.
O problema é que a discussão sustentada em tecnologia foi se mostrando insuficiente para dar conta do novo cenário de organização da esfera pública, dos ambientes de troca e circulação de informação. Em abril de 2016, levamos (pelo Ministério da Cultura) esse tema à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos.
Poucos meses depois, o episódio do Brexit e a eleição de Trump, entremeados pelo escândalo da Cambridge Analytica, evidenciaram que havia um problema. Desde então, as evidências se multiplicaram. Em 2020, o caldo entornou. E 2021 se iniciou com o banimento de Trump do Twitter e a suspensão pelo Facebook.
Tratados e legislações internacionais exigem, para que se imponham limites à liberdade de expressão, que elas passem no teste dos três passos: legalidade, necessidade e proporcionalidade. Mas todo o sistema foi pensado baseado na lógica de aplicação pública dessas respostas e de supervisão judicial dessas medidas.
Ou seja, o mais forte para mim, e que tenho visto se discutir pouco, é que não deveria caber ao Twitter e ao Facebook serem ao mesmo tempo promotor e juiz, ainda mais quando eles são, também, parte, legislador e, em última instância, tribunal de apelação.
A discussão, então, deve ser vista em duas partes, de mérito e de forma/processo.
No mérito do caso concreto, acho que a retirada do conteúdo de Trump tem sustentação legal, era necessária (por incitação à violência e à subversão da ordem democrática) e seria proporcional, ainda mais considerada a gravidade das consequências. Já o banimento da conta (no caso do Twitter) me parece que não responde à necessidade muito menos à proporcionalidade. A suspensão do Facebook é mais defensável, mas precisaria ser discutida a partir de parâmetros de direitos humanos.
Mas é na forma e no processo que está o maior problema. Dada a centralidade desses meios de comunicação para a organização da esfera pública, e, portanto, da democracia, os processos de moderação de conteúdo deveriam responder a parâmetros públicos definidos por lei. Pelo volume e velocidade, a aplicação inicial desses parâmetros deveria se dar pelas plataformas, mas com supervisão pública por órgãos reguladores independentes e em diálogo com os mecanismos tradicionais de justiça (Ministério Público, juízes, defensorias etc.).
Não deveríamos estar discutindo a ação do Twitter com base na política do Twitter, mas sim uma ordem legal com base em legislações nacionais (coerentes com os tratados e legislações internacionais).
É claro que, na ausência desses ordenamentos, é importante que haja ação das plataformas. Mas o poder absoluto que elas têm é inconcebível numa democracia. Sanções proporcionais poderiam ter impedido cautelarmente a difusão dos discursos de Trump (desde antes, inclusive), mas é preciso garantir o devido processo legal.
A Europa e o Reino Unido lançaram em dezembro propostas de regulação sobre o processo de moderação de conteúdo. O Digital Services Act (Europa) e o Online Harms Bill (Reino Unido) apontam caminhos possíveis para lidar com o tema. O que não dá mais é para negligenciar os 100 anos de debate sobre regulação democrática das comunicações e naturalizar o absolutismo das plataformas.