Tá rolando uma confusão gigantesca em torno do conceito de liberalismo. Me permitam tentar colocar alguns pingos nos is. Comecemos pelo liberalismo político (trataremos do liberalismo econômico em seguida).
PARTE 1
1.
O liberalismo político tem sua matriz no pensamento de autores como John Locke, Os Federalistas, Alexis de Tocqueville e John Stuart Mill, entre outros.
2.
Essa doutrina propõe a limitação do poderes do Estado e a defesa dos direitos individuais. Resulta das lutas da burguesia contra o Estado absolutista, numa época em que a burguesia poderia ser considerada uma classe revolucionária.
3.
Mas como limitar os poderes do Estado? Dividindo-o em diferentes ramos: Executivo (administração pública), Legislativo (promulgação de novas leis ou revogação das existentes) e Judiciário (aplicação das leis aos casos concretos). Este é o beabá e todo mundo deve saber, assim penso…
4.
As revoluções burguesas ditas “clássicas” podem ser consideradas episódios dessa luta: a Revolução Gloriosa na Inglaterra (1688-89), A Revolução Americana (Guerra de Independência entre 1776 e 1783) e a grande Revolução Francesa de 1789.
5.
Vamos pegar como exemplo a Revolução Americana (ou estadunidense, como eu prefiro). O resultado da Independência foi o surgimento de um Estado liberal, cujos traços gerais foram delineados na Constituição aprovada na Convenção da Filadélfia, em 1787. A Constituição é todinha liberal: Tem a separação do poder nos três ramos: Presidente da República, Congresso bicameral e Suprema Corte de Justiça (além dos Executivos e Legislativos estaduais e dos tribunais inferiores)..
6.
No liberalismo político político estadunidense, os presidentes são eleitos a cada quatro anos, em eleições “idôneas”, e existe a possibilidade de alternância no governo entre partidos rivais. Os representantes do povo no Congresso fiscalizam os atos do presidente da República, fazem as leis etc. A Suprema Corte é a “guardiã” da Constituição, e exerce algum tipo de controle e fiscalização dos demais poderes. Nesse sistema, onde teoricamente nenhum poder está acima dos demais, existe uma interpenetração que faz com que “o poder se torne um antídoto contra o próprio poder”, como dizia Alexander Hamilton.
7.
Então ali estão consagrados os direitos individuais, como a vida, a liberdade e a segurança. O povo ou seus representantes podem remover o presidente, não o reelegendo ou aprovando o impeachment. O calendário eleitoral é sempre respeitado, existe alternância no governo, o princípio da representação assegura um certo equilíbrio entre governo e sociedade etc.
8.
Tudo isso serve para caracterizar o liberalismo político como um regime democrático, certo? ERRADO! O problema é confundir liberalismo político com democracia, algo que nem mesmo um liberal como Norberto Bobbio fez. Na sua gênese, o liberalismo era tudo, menos democrático. John Locke, Thomas Jefferson e muitos outros eram defensores da escravidão e proprietários de escravos. Quando eles diziam “povo”, estavam se referindo UNICAMENTE aos proprietários de terras, homens brancos e livres. Não incluíram as mulheres, os negros, os brancos “livres” que eram pobres e não tinham propriedades. Todos eles eram contra o voto universal, desconfiavam profundamente do povo.
9.
“Estado de direito” e “liberalismo político” não são necessariamente democráticos. Mesmo um autor insuspeito, como o cientista político estadunidense Robert Dahl, mostrou que mesmo na segunda metade do século XX o sistema político do seu país não poderia ser considerado democrático. Leiam seu livro “How democratic is American Constitution?”.
10.
O Estado liberal estadunidense é a maior máquina de guerra da história. Em nome da liberdade individual, seus líderes “carregam a democracia” em drones, mísseis, caças supersônicos e gigantescos porta-aviões. Na Grã-Bretanha, o liberal Winston Churchill foi o responsável pelos maiores genocídios do seu império, entre a primeira e a segunda guerra mundial. Hannah Arendt era racista e defendeu o regime de segregação racial nos EUA em pleno século XX. Eu poderia pincelar centenas e milhares de exemplos na história de como os defensores do liberalismo usaram essa ideologia para oprimir e subjugar outros povos e grupos sociais.
11.
Marx tava certo quando explicou as revoluções burguesas da época moderna: a burguesia emancipou apenas a si mesma. Lutou contra os privilégios de outros grupos mas não abriu mão dos seus próprios privilégios. Usou a violência para conquistar (e se manter) no poder e agora acusa os oprimidos de serem violentos. Foi revolucionária, mas tornou-se conservadora assim que conquistou o monopólio do poder. A democracia é apenas uma contingência, não uma necessidade estrutural para o funcionamento desse sistema capitalista.
PARTE 2
1.
Como sabemos, o pensamento liberal e o Estado liberal não eram democráticos na sua gênese (do final do século XVII na Inglaterra até o o final do século XVIII nos EUA e França). John Locke, o “pai do liberalismo”, era defensor da escravidão, assim como muitos de seus discípulos. A própria Revolução Industrial inglesa teve como pilares o colonialismo e a escravidão moderna. A Revolução Americana foi liderada por proprietários de escravos, e os direitos de cidadania eram na verdade um privilégio para um pequeno grupo de homens, brancos, ricos e proprietários de terras e de escravos. As mulheres só puderam votar nos EUA um século e meio depois da Declaração de Independência!
2.
Mas alguém poderia questionar: “Mas você precisa entender o contexto da época. É preciso levar em consideração que o pensamento evoluiu, e não podemos olhar para o passado com a mesma perspectiva de uma pessoa do século XXI”.
3.
Esse tipo de argumento é cínico e serve apenas para dourar a pílula do liberalismo. Sabem por que? PORQUE DESDE A ANTIGUIDADE, EXISTIRAM DIVERSOS PENSAMENTOS DEMOCRÁTICOS, e porque desde que as sociedades foram divididas em classes sociais antagônicas, houve muito questionamento e resistência à dominação.
4.
Para cada Aristóteles que defendia a escravidão, existiam tantos outros (como Sócrates) que consideravam essa instituição uma atrocidade, algo abominável. Para cada liberal ou conservador no Parlamento inglês do século XVII, existiam muitos outros que eram partidários do Partido Nivelador (Os “Levellers”), democratas radicais que colocavam a igualdade muito acima da liberdade dos proprietários. Para cada Montesquieu, tinha também um Rousseau. Para cada girondino (ligado aos interesses da burguesia liberal francesa), existiam muitos outros jacobinos (democratas radicais). Para cada “federalista” estadunidense, existiam muitos outros anti-federalistas. Para cada “capitalista manchesteriano” do século XIX, que recusava a legislação protetora do trabalho, existiam centenas de socialistas que denunciavam o princípio da “liberdade contratual” como uma máquina de moer carne humana. Para cada liberal machista que era contra o voto feminino, se levantavam dezenas de mulheres sufragistas. Já existia um pensamento crítico radical na primeira metade do século XIX, que se levantava contra o liberalismo. Resumindo: não existe pretexto para ser autoritário em nenhum lugar do mundo, em nenhuma época da história.
5.
Aí um liberal pode argumentar novamente: “Tá bom, mas é preciso reconhecer que o liberalismo não era democrático naquela época, mas agora ele se tornou e hoje praticamente todos possuem direitos e são iguais perante a lei”. Bom, não vou nem entrar no mérito do princípio da igualdade formal. Basta pensar que, se hoje mulheres e negros, por exemplo, são iguais perante a lei, isso aconteceu APESAR e não em virtude do pensamento liberal. Todas as conquistas democráticas contemporâneas (do sufrágio universal aos direitos sociais, passando pelas políticas redistributivas) são o resultado precisamente da LUTA daqueles que sempre se colocaram FORA da tradição liberal do pensamento. Esses lutaram, os outros tentaram esmagar. O Estado liberal não se tornou democrático num passe de mágica.
6.
Mais uma vez, é preciso lembrar: a democracia não é uma necessidade, é uma contingência do capitalismo. Existem muitas diferenças entre os defensores do liberalismo, mas o denominador comum – a defesa da propriedade – continuará sendo sempre a base da exploração de uma classe por outra.
7.
Só mais uma coisinha (por enquanto): acho curioso alguém criticar o marxismo por ser uma “teoria ultrapassada, do século XIX”, quando pretende defender uma teoria que é muito mais velha. O feudalismo já acabou minha gente, foco no capitalismo!
PARTE 3
1.
Grosso modo, podemos identificar dois tipos de liberalismo: o liberalismo político e o liberalismo econômico. Fundamentalmente, como disse Norberto Bobbio (um dos mais prestigiados teóricos do liberalismo no século XX), o liberalismo político parte da premissa da separação dos PODERES do Estado, e o liberalismo econômico está ligado à ideia de separação das FUNÇÕES do Estado. Pelo menos nesta descrição tipológica, estou de acordo com Bobbio.
2.
Não existe um consenso quando se trata de definir qualquer tipo de liberalismo. Mas é possível identificar alguns aspectos que dificilmente podem ser separados desses conceitos: O liberalismo político pode ser visto como uma corrente do pensamento que propõe a limitação e a separação entre os poderes do Estado, a defesa dos direitos individuais (propriedade, vida e liberdade), um governo representativo, a realização de eleições e o primado da lei sobre a vontade discricionária dos indivíduos e governantes (“Rule of Law”, “Estado de Direito” ou “Governo das Leis).
3.
O liberalismo econômico, como foi dito, propõe a limitação das funções do Estado. Se o liberalismo político (pelo menos em tese) se opõe ao Estado absoluto, o liberalismo econômico se opõe ao Estado Social. Deste modo, os teóricos do liberalismo econômico defendem o chamado “Estado mínimo”: o princípio da “liberdade contratual” nas relações entre capital e trabalho, a “mão invisível” do mercado, a abertura comercial, a flexibilização trabalhista, a privatização de empresas, a ideologia meritocrática etc. Em suma, é a máxima expressão da economia de mercado, segundo a máxima “laissez-faire, laissez-passer” (deixar fazer, deixar passar).
4.
O próprio Norberto Bobbio reconheceu que o liberalismo rejeita qualquer perspectiva coletiva. De acordo com ele, “não existe liberalismo sem individualismo”. Nessa perspectiva, o que nós chamamos de sociedade não passa de uma multidão de indivíduos, dispersos e isolados, cada um perseguindo os seus próprios interesses egoístas…
5.
O liberalismo político pode coexistir com alguma variante social-democrata de Estado burguês, como é o caso do “Estado de bem-estar social” (como nos países escandinavos). E o liberalismo econômico pode ser aplicado em países governados por líderes fascistas e genocidas, como foi o caso de Pinochet no Chile. A propósito, a grande inspiração do nosso atual ministro da economia é o modelo chileno de Pinochet, inspirado nos gurus da Escola de Chicago (Paulo Guedes é um conhecido “Chicago Boy”).
6.
A História nos mostra que, na América Latina, as diversas frações da burguesia sempre defenderam um tipo de liberalismo econômico combinado com uma “democracia de baixa intensidade”, para utilizar aqui um eufemismo. No Brasil, na Argentina, no Chile, no Uruguai, na Venezuela e em muitos outros países, o padrão é invariavelmente o mesmo: Sempre que há um aumento da participação popular, e o conflito distributivo é intensificado, os “liberais” mostram que a única coisa que importa é a defesa da propriedade. E nem se envergonham quando lambem as botas do imperialismo. Afinal, quando eles sentem necessidade de preservar os seus privilégios, não hesitam em massacrar o seu povo mostrando servilismo aos agentes estrangeiros…
PARTE 4
1.
Um dos maiores erros de quem defende o liberalismo no Brasil é acreditar que ele pode funcionar exatamente como nos EUA ou no Reino Unido, por exemplo. Os defensores dessa ideia acreditam que é possível “transplantar” ou copiar um modelo que “funciona muito bem por lá”.
2.
Comecemos pelo liberalismo político (tratarei do liberalismo econômico na parte 5). Países como EUA, Inglaterra e França passaram por revoluções burguesas radicais. Na Revolução Francesa de 1789, todo o edifício do Antigo Regime ruiu e deu lugar a uma ordem completamente diferente. Não houve uma “transação” envolvendo burguesia de um lado, e nobreza/aristocracia de outro: praticamente todos os privilégios foram destruídos, por meio de uma revolução sangrenta, onde a reação foi duramente sufocada juntamente com os representantes da grande propriedade. A propósito, vocês conhecem a “Marselhesa”, o hino nacional francês? Por meio dessa canção, os franceses se vangloriam da sua história de lutas e conclamam o povo a pegar em armas e derramar o sangue dos seus inimigos…
3.
Nos EUA, aconteceram dois episódios importantes. O primeiro foi a Guerra de Independência, entre 1776 e 1783. Inspirados nas ideias iluministas e liberais (começando por John Locke e o “direito de resistência contra a opressão e a tirania”), a população das colônias britânicas da América do Norte pegou em armas e conquistou a Independência, destruindo as tropas britânicas. Mas faltava abolir a escravidão, o que só viria acontecer em 1865, no final de uma sangrenta guerra civil que deixou quase um milhão de mortos. As tropas dos Estados sulistas foram derrotas, os escravos foram libertados, FOI REALIZADA UMA REFORMA AGRÁRIA no governo de Abraham Lincoln e muitos antigos proprietários de escravos tiveram suas cabeças decepadas, praticamente o mesmo destino da aristocracia e da nobreza na França.
4.
No Brasil, nada disso aconteceu. Nossa revolução burguesa aconteceu “pelo alto”, sem a mínima participação das classes subalternas. Tivemos que pagar pela nossa “Independência”, contraindo um empréstimo junto aos banqueiros ingleses para indenizar Portugal pela perda da sua mais importante colônia, como forma de obter o reconhecimento das potências da época. Quando a escravidão foi abolida, não houve qualquer indenização aos escravos, e a única “reparação” foi feita para beneficiar justamente os proprietários! Não fizemos a reforma agrária, e o latifúndio continuou sendo o eixo da acumulação no Brasil. A burguesia não destruiu os representantes da grande propriedade, como na França ou nos EUA, pelo contrário: empresários urbanos e grandes proprietários de terra fizeram tudo “pelo alto”, e os primeiros ainda se tornaram caudatários dos interesses dos segundos. Em 1930, repetiu-se o que aconteceu em 1822 e 1888/89, e os mesmos personagens de sempre “fizeram a revolução antes que o povo a fizesse”.
5.
Nas revoluções burguesas “clássicas”, a ruptura foi radical. Na dialética superação-conservação, quase nada foi preservado da velha ordem social. Já no Brasil, os elementos de preservação sobrepuseram-se aos de superação. A nossa triste herança colonial e escravocrata pode ser observada em praticamente todas as reentrâncias da vida social nos dias de hoje. No Brasil, é ilusão acreditar que o Parlamento (Congresso Nacional) poderá funcionar como o Parlamento britânico, sem antes remover todo o entulho que nos foi legado pelos agentes da reação. Nossas classes dominantes já mostraram que são capazes de sacrificar a democracia sem hesitar, se isso for visto como uma ameaça aos seus privilégios de classe (1964 e 2016 estão aí para provar). O liberalismo pode ser muito bonito na teoria, mas ele depende de uma série de circunstâncias que não dependem da nossa vontade…
6.
Como pensar nos direitos humanos num país onde a polícia tem uma estrutura fortemente militarizada, e as Forças Armadas são o “quarto poder” que se intromete em assuntos de natureza estritamente política? Como o Poder Judiciário pode ser imparcial, se os juízes são recrutados e doutrinados segundo a mesma lógica do patrimonialismo e do coronelismo? Como contar com um governo ou um legislativo “responsivos”, como querem os liberais, diante da enorme influência dos setores mais retrógrados da sociedade? Sério que tem gente que acredita que podemos construir uma democracia perdoando os criminosos da ditadura, e fazendo com que eles nunca paguem pelo que fizeram? Tem alguém achando que a democracia é algo que cai do céu, e ignorando o fato incontestável de que a violência foi a parteira de todas as grandes transformações sociais?
7.
Não existe possibilidade de construção da democracia (nem mesmo de autêntico liberalismo político) sem uma radical transformação das nossas estruturas. A questão é que nenhuma fração da burguesia brasileira está disposta a aceitar essa mudança. Uma autêntica revolução brasileira deverá ser necessariamente socialista.
PARTE 5
1.
Já falei anteriormente sobre o problema da tentativa de “transplantar” o liberalismo político dos países anglo-saxões para o Brasil. Algo muito semelhante acontece quando se trata de transplantar o liberalismo econômico.
2.
Em primeiro lugar, é preciso fazer algumas observações metodológicas e teóricas. No plano teórico, o liberalismo econômico pressupõe a livre-concorrência, que seria exatamente o oposto do conceito de monopólio. O problema é que a “livre concorrência” sempre baseia-se na existência de algum tipo de monopólio. O primeiro e mais importante de todos é o monopólio da propriedade privada dos meios de produção, porque sem ele o capitalismo seria impossível. O segundo tipo de monopólio coincide exatamente com o período que os liberais mais exaltam, aquele iniciado com a Revolução Industrial e que se estendeu até o final do século XIX: o período de apogeu do Império Colonial britânico, em que a Inglaterra deteve o monopólio industrial, financeiro e marítimo em escala mundial. No final do século XIX, o rápido desenvolvimento de outras nações, como EUA e Alemanha, fez nascer as disputas inter-imperialistas pela partilha do mundo, e a fase do chamado “capitalismo concorrencial” deu origem ao capitalismo monopolista, onde os trustes e cartéis dominavam os mercados. Portanto, a rigor a “concorrência perfeita” jamais existiu fora dos manuais de economia política ortodoxa.
3.
Os exemplos mais notáveis de “catch up” (países que superaram o atraso em relação à Inglaterra, por meio de uma industrialização acelerada) foram exatamente os EUA e a Alemanha do século XIX. Esses dois países abandonaram completamente o princípio da “livre circulação de mercadorias” e adotaram políticas PROTECIONISTAS, que deram um vigoroso estímulo ao desenvolvimento das suas forças produtivas. Nos EUA e na Alemanha, as teorias de Adam Smith e David Ricardo eram desprezadas, e ganharam notoriedade dois grandes economistas que defendiam a intervenção governamental: Carey e Friedrich List.
4.
Mesmo na Inglaterra, o Estado foi um importante instrumento da acumulação. O mito da “liberdade econômica” não resiste a uma investigação histórica, como nos mostrou o economista sul-coreano Ha-Joon Chang, professor da Universidade de Harvard (sim!) e autor do brilhante livro “Chutando a escada” (que não tem nada de revolucionário, diga-se de passagem). Chang nos mostra como o protecionismo foi adotado na Inglaterra já a partir do século XVI, portanto muito antes da sua Revolução Industrial.
5.
Existe uma divisão internacional do trabalho, e dentro desta observamos gigantescas assimetrias quanto ao grau de desenvolvimento das forças produtivas nos países do centro e da periferia (melhor dizendo, entre os países imperialistas e os países dependentes). Ora, qualquer pessoa dotada de uma inteligência razoável consegue reconhecer que, numa situação de completa abertura comercial e circulação de mercadorias, as indústrias dos países mais desenvolvidos conseguem aniquilar as indústrias dos países menos desenvolvidos. O argumento utilizado por Friedrich List, de proteção da indústria nascente, visava justamente impedir que esta fosse sufocada no seu “nascedouro”.
6.
As diferenças quanto ao desenvolvimento econômico não são apenas quantitativas, são também qualitativas. Já expliquei isso no meu livro “Capitalismo dependente e relações de poder no Brasil”, publicado em 2012. Alguns podem imaginar que um país “atrasado” está num “estágio” equivalente àquele em que se encontrava um país desenvolvido há 30 ou 40 anos, por exemplo. Mas não se trata disso. “Desenvolvimento” e “subdesenvolvimento” caminham juntos e se retroalimentam, e fazem parte de um só processo, que é o desenvolvimento do capitalismo em escala mundial. Só isso explica os fortes constrangimentos ao desenvolvimento da chamada periferia, como o mecanismo da dívida, o controle exercido pelo capital financeiro forâneo, o militarismo e o esbulho neocolonial.
7.
Aceitar o liberalismo econômico num país como o Brasil só pode ser obra de uma burguesia entreguista e antinacional, que em nenhum momento da história pretendeu formular um projeto de desenvolvimento nacional (desenvolvimento do capitalismo em bases autônomas). Aceitar o liberalismo num país como o Brasil é ignorar a história e deixar de fazer exatamente aquilo que os outros fizeram, mas fingem que nunca fizeram. Eles se tornaram ricos e dominaram ao mundo porque chegaram lá em cima com a ajuda de uma escada. Ser liberal é achar que podemos abrir mão desse importante instrumento…
PARTE 6
1.
Podemos identificar vários tipos de liberalismo, além da tradicional divisão entre liberalismo político e liberalismo econômico. Os primeiros liberais eram defensores da escravidão e entendiam que só a classe de proprietários poderia contar com os direitos de cidadania. Esse era praticamente um consenso entre os teóricos do liberalismo até o final do século XVIII, mas ainda tinha uma grande influência nos círculos liberais até pelo menos meados do século XIX. O Estado Imperial brasileiro era um Estado liberal, assim como o estadunidense (numa época em que a escravidão já tinha sido abolida na maior parte do mundo).
2.
Havia um liberalismo conservador, representado por figuras como o francês Alexis de Tocqueville. O inglês John Stuart Mill costuma ser considerado um liberal mais “progressista”, apesar de ser um defensor do colonialismo e contrário à concessão dos direitos de cidadania para a maior parte da população (ele defendia critérios censitários e capacitários para o alistamento eleitoral, por exemplo). No final do século XIX e no começo do século XX, o inglês John A. Hobson escreveu uma obra muito importante (“Estudos sobre o imperialismo”), na qual ele criticava o esbulho colonial e a rapina imperialista. Neste livro, Hobson (um membro da ala esquerda do Partido Liberal britânico) defendeu um “autêntico liberalismo”, apontando as contradições existentes entre a teoria liberal e as práticas antiliberais das grandes potências econômicas. Hobson dizia que o dinheiro gasto com as guerras poderia ser utilizado dentro da própria metrópole, para aliviar o sofrimento da sua classe operária; poucos conhecem a obra de Hobson, mas ele defendeu políticas distributivas muito tempo antes de John Maynard Keynes se tornar a principal referência mundial do pensamento reformista.
3.
Keynes é um exemplo de mistura de liberalismo político com crítica dos fundamentos do liberalismo econômico. A “revolução teórica keynesiana” levou alguns economistas a considerá-lo um herege, por questionar os velhos dogmas de seus colegas economistas. Keynes mostrou de forma muito competente aquilo que depois se tornaria praticamente um consenso: o “livre funcionamento da economia de mercado” não é capaz, por si só, de promover a alocação mais eficiente dos recursos econômicos, nem de garantir um equilíbrio entre a oferta e a demanda. Os chamados “remédios anti-cíclicos” apresentados por Keynes baseiam-se na ideia de que o ESTADO pode e deve corrigir as distorções provocadas pelo mercado.
4.
Apesar disso, Keynes continuava se reivindicando liberal (importante dizer que nos países anglo-saxões o liberalismo está comumente associado ao liberalismo político, diferente do Brasil e outros lugares). Suas ideias foram bem aceitas pela centro-esquerda reformista nos EUA, onde a sua expressão mais bem acabada foi o New Deal do Presidente Franklin Roosevelt. Mas esse conjunto de soluções também foi abraçado com entusiasmo pelos social-democratas da Alemanha, pelos trabalhistas britânicos, pelos socialistas franceses e por muitos outros partidos que não estavam vinculados à tradição liberal do pensamento e queriam construir aquilo que ficou conhecido como “Estado de bem-estar social”.
5.
Na sua obra “Ensaios sobre a persuasão”, Keynes publicou um artigo com a sugestiva pergunta: “Eu sou um liberal?”. Depois de responder afirmativamente, o economista explicou por que ele jamais se filiou ao Partido Trabalhista britânico, diante do fato que era esse o partido que mais fervorosamente defendia as suas ideias. A resposta de Keynes foi mais ou menos essa: “Eu não me filio ao Partido Trabalhista porque esse é um partido de classe, da classe trabalhadora. Mas essa não é a minha classe. Eu tenho lado, e diante dos conflitos de classe, eu ficarei sempre do lado da culta e educada burguesia”.
6.
Eu considero importante que todos levem em consideração a sinceridade de Keynes. Isso serve para mostrar os limites do liberalismo. Pode ser um ponto de partida para o reconhecimento de uma das mais importantes lições que a História pode nos oferecer: sempre que as pressões “de baixo para cima” crescem e ameaçam os privilégios dos proprietários, os liberais apresentam a tese da “ingovernabilidade democrática” para dizer que não é possível contemplar todos os setores da sociedade (até mesmo Norberto Bobbio reconheceu isso num dos capítulos do seu clássico “Liberalismo e democracia”).
7.
Uma coisa que eu acho interessante é a maneira como os liberais se defendem desse tipo de crítica, como a minha, que parte de uma perspectiva marxista. Já li textos de professores universitários dizendo que nós “misturamos tudo”, e confundimos os diferentes tipos de liberalismo. Nada mais falso! Nestes últimos 170 anos, tudo o que a tradição marxista fez foi seguir a máxima de “fazer análises concretas de situações completas”. Há um importante mapeamento dos diferentes tipos de liberalismo, feito justamente para EXPLICAR essas variantes, sem deixar de apontar, é claro, os seus denominadores comuns. Domenico Losurdo fez um esforço monumental para explicar a história do liberalismo, percorreu as obras de TODOS os seus grandes representantes, publicou várias obras sobre o assunto que somam milhares de páginas, e uma pessoa ainda tem a coragem de dizer que tudo isso não passa de um mero compilado de crônicas anedóticas! Esse tipo de “análise” revela a pobreza dos argumentos de seus críticos…
8.
Qualquer tentativa de “análise” da relação entre liberalismo e democracia deve sempre levar em consideração a luta de classes. Essas estórias que isolam o pensamento da prática política eram até bonitinhas, no tempo do idealismo filosófico alemão da primeira metade do século XIX. Hoje servem apenas para disfarçar os verdadeiros compromissos desse tipo de personagem.
PARTE 7
1.
É interessante como os defensores do liberalismo político no Brasil apresentam seus argumentos. Tornou-se comum invocar o artigo 5 da Constituição Federal, como forma de “demonstrar” que os direitos individuais (como a vida, a liberdade e o direito de manifestação do pensamento) estão garantidos a todos os cidadãos, independentemente da origem social, cor da pele, religião ou gênero, por exemplo. É realmente espantoso observar que ainda existem pessoas que limitam suas análises ao campo do “dever ser”, e não analisam as coisas como elas realmente são. O primeiro passo para superar essa armadilha é reconhecer que não são as leis que explicam a sociedade, e sim a sociedade que explica as leis. O segundo é levar em consideração que as leis, por si sós, não possuem o condão de mudar a natureza das coisas, e que uma grande parte daquilo que está na Constituição simplesmente permanece letra morta.
2.
Os direitos individuais previstos no artigo 5 nada mais são do que as chamadas “liberdades negativas”, aquelas mesmas que a burguesia revolucionária defendia no Século das Luzes. São conceitos ligados ao liberalismo político, não à democracia. No máximo, alguém poderia argumentar que essas são condições necessárias, mas não suficientes, para caracterizarmos um regime como democrático. Já falei anteriormente como essas liberdades coexistiram com diversas formas de opressão contra as classes e grupos subalternos, em diferentes épocas históricas e em diversos países.
3.
Esses direitos individuais já estavam previstos (pasmem!) na Constituição do Império do Brasil de 1824, outorgada pelo imperador Dom Pedro I. Estavam previstos até mesmo na Carta outorgada por Getúlio Vargas em 1937 (Ditadura do Estado Novo) e nas duas Constituições outorgadas pela ditadura empresarial-militar, em 1967 e 1969. Invocar o artigo 5 para “demonstrar” a superioridade do liberalismo político só pode ser o resultado de uma profunda ignorância ou má-fé.
4.
O Direito, como nos dizia Marx, não se resume à letra da lei. O direito envolve ainda uma outra dimensão, que é o processo de aplicação da lei. Déficits democráticos podem ser encontrados em duas situações: na primeira, a própria lei estabelece algum tipo de discriminação (por exemplo, o sufrágio masculino ou censitário), e aí estamos diante de um déficit de direito. A segunda situação, a do déficit de fato, ocorre quando a lei emancipa um determinado grupo social (conquista de direito), mas o dispositivo se torna letra morta. Como exemplo desse segundo tipo, podemos mencionar o sufrágio dos negros nos EUA depois da abolição: mesmo “podendo” votar, porque a Constituição não proibia mais, na prática quem “ousasse” exercer esse direito poderia ter a cabeça cortada pelos supremacistas da Ku Klux Klan.
5.
Na chamada “Batalha da Constituinte”, em 1987/88 (tema do meu próximo livro, que sairá em breve), os direitos previstos no artigo 5 eram defendidos também pelos conservadores e reacionários. As chamadas “liberdades negativas” foram defendidas por praticamente todos os membros do PFL, do PDS, do PL e do PMDB. A LUTA PELOS DIREITOS DEMOCRÁTICOS NÃO ENVOLVIA OS DIREITOS INDIVIDUAIS DO CAPÍTULO 5, E SIM OS DIREITOS SOCIAIS DOS ARTIGOS 6 E 7!
6.
O Movimento Negro Unificado (MNU) esteve presente na Batalha da Constituinte, por meio de alguns dos mais importantes militantes ou apoiadores: Lélia Gonzalez, Helena Theodoro, Abdias do Nascimento, Benedita da Silva, Carlos Alberto Caó e milhares de outros levaram suas propostas: rompimento de relações diplomáticas com a África do Sul, ensino de História da África nas escolas, tipificação do racismo como crime inafiançável e imprescritível, regularização das terras quilombolas, reforma agrária, regulamentação dos meios de comunicação social para impedir a prática de ações discriminatórias etc. Algumas reivindicações foram atendidas, outras não. Mas o fato é que os defensores do liberalismo na Constituinte foram todos contrários a essas propostas!
7.
O mesmo pode ser dito em relação às mulheres, à classe trabalhadora em geral, aos indígenas e outros grupos submetidos à opressão. A bancada feminina na Constituinte (apenas 26 mulheres num total de 559 parlamentares) atuou em sinergia com o CNDM, o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher. Os liberais (que no Brasil eram todos conservadores) foram contrários à ampliação da licença-maternidade e do direito ao aborto, para citar apenas dois exemplos. Os liberais foram contra o direito de greve. Os liberais foram contra a desmilitarização da polícia. Os liberais foram contra a punição dos criminosos da ditadura. Os liberais foram contra a demarcação de terras indígenas, contra a reforma agrária, contra a taxação das grandes fortunas, contra a regulamentação da mídia etc. Eles foram contra propostas que já eram uma realidade em países como EUA e Grã-Bretanha, por exemplo.
8.
Estou entre aqueles que sustentam a tese de que não houve um processo de redemocratização no Brasil. O que houve na verdade foi um afrouxamento dos controles autoritários, um processo de “liberalização do regime” feito pelo alto e sob a tutela das Forças Armadas. Basta pensar na militarização do aparelho de Estado e no papel Constitucional das Forças Armadas. Outra coisa: não existirá jamais democracia no Brasil enquanto o latifúndio (monocultura de exportação, outro resquício colonial) não desaparecer por completo. Vocês sabiam que o bem-sucedido lobby dos latifundiários na Constituinte produziu um enorme retrocesso no capítulo da reforma agrária, e que o texto aprovado conseguiu ser pior até mesmo do que a Lei de Terras do governo Castello Branco?
9.
O casamento entre liberalismo e capitalismo dependente jamais levará à superação das nossas enormes desigualdades.
PARTE 8
1.
Já falei anteriormente como os defensores do liberalismo no Brasil, via de regra, têm pouco ou nenhum compromisso com a democracia. Pelos exemplos históricos que abundam, isso vale tanto para aqueles que defendem o liberalismo político quanto o liberalismo econômico.
2.
Mas alguém poderia objetar: “mas eu conheço liberais que também são democratas”. Quanto a isso, eu não tenho a menor dúvida e posso dizer que também conheço alguns democratas autênticos. Estes estão sempre dispostos a defender as regras do jogo, o Estado de Direito, o devido processo legal, reconhecem que houve um golpe em 2016, estão preocupados com os direitos humanos e defendem políticas sociais visando o fim da pobreza ou a redução das desigualdades sócio-econômicas.
3.
A filósofa Nancy Fraser, conhecida por suas análises sobre o “neoliberalismo progressista”, tem uma análise interessante (e crítica) sobre esse casamento entre defesa da economia de mercado e direitos das minorias. Ela mostra como Wall Street e corporações ligadas à indústria cultural e de tecnologia tentam cooptar diversos setores progressistas. Entre os movimentos progressistas que são capturados pela lógica individualista, Fraser destaca certas correntes feministas, antirracistas e LGBTTs. A ideia de “empoderamento”, quando dissociada da perspectiva de classe social, seria um exemplo desse neoliberalismo progressista, nas palavras da autora.
4.
Quando eu falo que o liberalismo no Brasil assume um caráter essencialmente conservador (quando não é abertamente reacionário), não estou falando de indivíduos particulares. Estou falando de grupos sociais, movimentos ou partidos políticos, aqueles que realmente têm alguma capacidade de orientar o sentido das ações. Quem conhece minimamente a História do Brasil, não terá nenhuma dificuldade em reconhecer a força explicativa da expressão “liberalismo excludente da Primeira República” (1889-1930), mesmo se algum liberal tentar argumentar que “liberalismo” e “excludente” são conceitos antagônicos. A verdade é que não são antagônicos, quando é revelada a essência ou o escopo do liberalismo (cuja matriz é visceralmente autoritária).
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Poderíamos investigar se algum influente movimento liberal apoiou as causas populares em outros períodos da nossa História. A resposta é negativa, se pensarmos no período da assim chamada “República Populista” do período 1945-64, quando os dois grandes partidos liberais (PSD e UDN) uniram-se para derrubar o presidente Goulart por meio de um golpe. A propósito, toda a campanha para derrubar o presidente Goulart foi conduzida por dois “think tanks” liberais, o IPES e o IBAD (algo como os Institutos Millenium ou Mises daquela época). Nem precisamos falar do período ditatorial, entre 1964 e 1985, não é mesmo? Já no período da transição política, nenhum setor importante que se reivindicava liberal questionou os termos da “distensão lenta, segura e gradual”, concordando que o processo fosse conduzido pelo alto, sem participação popular.
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O que foi dito em relação aos think-tanks vale também para todas as frações da burguesia brasileira: latifundiários, barões da mídia, industriais, banqueiros, comerciantes etc. Todos os seus legítimos representantes se reivindicam liberais, mas jamais tiveram um forte compromisso com as liberdades democráticas. Estudem a história da FIESP, da UDR, da CNI, da FIRJAN, da FEBRABAN, da UDR, da CNA, das Associações Comerciais e outros sindicatos patronais, e a conclusão será inevitavelmente uma só: nenhuma dessas entidades se opôs à ditadura (que por essa razão é chamada de ditadura empresarial-militar), além de terem apoiado a violação da Constituição em 2016, sem falar no apoio a Bolsonaro.
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Portanto, alguém pode até se considerar um “autêntico liberal”, colocando-se como defensor da participação popular. A grande questão é que nos países imperialistas, o liberalismo jamais abandonou o militarismo e o neocolonialismo. E nos países dependentes, o liberalismo acomodou aqueles mesmos interesses externos, sacrificando a imensa maioria do seu povo. Isso acontece porque o liberalismo age segundo a lógica da acumulação do capital, um processo que não depende da vontade daqueles que sonham com a possibilidade de torná-lo mais “civilizado”.
PARTE 9
As duas principais referências do pensamento econômico liberal contemporâneo são as escolas de Chicago (EUA) e de Viena (Áustria). Seus principais “gurus”, Milton Friedman e Friedrich A. Hayek, tiveram uma enorme influência na virada conservadora que começou no final dos anos 70. A primeira-ministra britânica Margaret Thatcher (1979-1990) e o presidente estadunidense Ronald Reagan (1981-1989) buscaram seguir à risca o receituário monetarista, efetuando cortes nos investimentos públicos, principalmente nas áreas da educação, saúde e seguridade social.
Nesses casos, é praticamente impossível separar a teoria da prática. Líderes conservadores manifestavam publicamente suas simpatias por aqueles economistas, e vice-versa. Pouco tempo antes, mais exatamente a partir do golpe de Estado no Chile (1973), já eram notórias as simpatias que os “Chicago Boys” nutriam pelo ditador chileno Augusto Pinochet, que se comprometeu a aplicar todo o conjunto de propostas formuladas pelos discípulos de Friedman. Quando Thatcher chegou ao governo britânico, seis anos depois, ela declarou que admirava o modelo chileno e disse que esse foi um importante “laboratório” para a introdução de uma nova matriz econômica.
Em todos esses casos, havia um obstáculo: os sindicatos de trabalhadores, que não concordavam com as políticas de privatizações, corte de investimentos na área social e desregulamentação do mercado de trabalho. Thatcher passou a chamar os sindicatos de “inimigos públicos número um”, e iniciou uma verdadeira guerra visando a sua destruição, ou pelo menos torná-los tão fracos que perderiam completamente o poder de barganha. No Chile de Pinochet, nos EUA de Reagan e no Reino Unido de Thatcher houve o emprego de muita violência para reprimir protestos e greve dos trabalhadores. A greve dos controladores aéreos no governo Reagan e a greve dos mineiros no governo Thatcher se tornaram paradigma do tratamento da questão social em países considerados democráticos (Thatcher permitiu que operários morressem durante uma greve de fome, em protesto contra o fechamento de minas). A expressão “dama de ferro” veio justamente dessa intransigência e tentativa de demonstrar pulso firme para massacrar trabalhadores.
Hayek chegou a declarar que o Chile era mais livre sob a ditadura de Pinochet do que em qualquer outro momento da história. Esse mesmo economista disse que, se tivesse que escolher entre a liberdade econômica e a liberdade política, não hesitaria em sacrificar a segunda para garantir a primeira (ele disse também que preferia uma ditadura com liberdade econômica do que uma democracia com forte presença do Estado). Thatcher admirava Hayek, Friedman e Pinochet. E odiava Nelson Mandela, a quem ela considerava “terrorista”. A mesma Thatcher que visitou Pinochet na cadeia em Londres, para prestar solidariedade em nome de uma velha amizade, mesmo sabendo que o seu “amigo” estava preso sob acusação de graves violações aos direitos humanos, que incluíam execuções sumárias, torturas, sequestros e ocultação de cadáveres.
Quem tiver interesse em conhecer um pouco mais detalhadamente o “tratamento” dispensado por Thatcher aos trabalhadores, deixo aqui o link para um artigo que publiquei anos atrás, intitulado “Direitos trabalhistas e políticas de confrontação com o sindicalismo britânico: 1979-90”. Acho que pode ajudar um pouco mais, pelo grau de detalhamento a respeito das questões aqui colocadas.
Sobre o professor
– Bacharel em Direito (1997). É mestre em Ciências Sociais pela UNESP – Universidade Estadual Paulista (2003), tendo defendido dissertação sobre o desenvolvimento capitalista e a hegemonia da burguesia industrial brasileira, no período 1930-54. É doutor em Ciências Sociais pela PUC/SP, título obtido com a defesa da tese “O imperialismo e a dominação burguesa na Primeira República brasileira (1889-1930)”, em dezembro de 2007. Pesquisador das ideologias, políticas e constituições brasileiras. Atualmente é professor de ensino superior da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, PUC/SP.
Foi Chefe do Departamento de Política da PUC/SP (entre 2016 e 2018) e atualmente é Coordenador do Curso de Ciências Sociais da mesma Universidade. Tem experiência na área de Ciência Política, com ênfase em Teoria Política e história política do Brasil contemporâneo. Atua principalmente nas seguintes linhas de pesquisa: imperialismo e relações internacionais, marxismo, hegemonia política, ideologias, capitalismo tardio, teoria da dependência, Estado e lutas de classes. Autor dos livros Capitalismo dependente e relações de poder no Brasil (Editora Expressão Popular, 2012, 384 páginas) e Partidos políticos e disputa eleitoral no Brasil (EDUC, 2016, 273 páginas).
(Texto informado pelo professor, reproduzido da plataforma Lattes)