No tema da segurança pública, a Constituição de 1969 determinava que as funções de prevenção e repressão aos crimes comuns (polícia ostensiva) caberiam a uma corporação policial militarizada, subordinada ao Exército e organizada à semelhança das Forças Armadas: “As polícias militares, instituídas para a manutenção da ordem pública nos Estados, nos Territórios e no Distrito Federal, e os corpos de bombeiros militares são considerados forças auxiliares, reserva do Exército” (art. 13, §4º da CF de 1969).
Nesse modelo de organização, o trabalho de polícia judiciária (investigação criminal) caberia às polícias civis dos estados, enquanto o patrulhamento ostensivo era uma atribuição das polícias militares (que deveriam atuar como polícia preventiva, uniformizada, organizada com base na hierarquia e na disciplina rígida, atuando como força reserva ou auxiliar do Exército). Embora os fins da polícia militar fossem diferentes dos do Exército, os meios empregados eram semelhantes: a primeira copiava o segundo em vários aspectos, reproduzindo de modo anacrônico e autoritário seu modelo de recrutamento, doutrinação e organização. Na prática, as polícias militares atuavam e seguem atuando como se o “outro” – também chamado de bandido, marginal ou delinquente – fosse um inimigo que precisasse ser eliminado, da mesma maneira que o soldado do exército inimigo no contexto de uma guerra.
O grande problema, numa situação como essa, é que a polícia e o exército, ao menos no campo da teoria democrática, deveriam ter finalidades diferentes. Como observou Luiz Eduardo Soares, a organização do Exército é inteiramente voltada para a guerra, e por isso ele utiliza meios que lhe são próprios: para garantir a soberania do país, o Exército deve ser capaz de deslocar um grande contingente de tropas, que são preparadas para aniquilar o inimigo por meio da violência. É por isso que se exige hierarquia, disciplina rígida, uma organização verticalizada e centralização decisória (de acordo com a ideia de adequação dos meios aos fins). Mas quando esse modelo serve de inspiração para tratar de um assunto tão diferente, como o da segurança pública, não fica difícil entender a sua completa inadequação. Como esse modelo ainda não foi alterado, o Brasil mantém o recorde mundial em execuções extrajudiciais (apenas no Estado do Rio de Janeiro, entre 2003 e 2018, houve 15.061 mortes provocadas por ações policiais). Trata-se de um verdadeiro genocídio, e as maiores vítimas são jovens negros, pobres e periféricos (o que revela a outra face do problema, que é a perpetuação do racismo estrutural).
Aqueles que defendem a desmilitarização – por entenderem que polícia e exército possuem finalidades distintas – sustentam que a primeira deve garantir a segurança pública, prevenir o crime, garantir os direitos dos cidadãos e evitar que tais direitos sejam violados. Mas a legislação brasileira continua sendo uma das mais anacrônicas dentre os países considerados democráticos, e manteve até mesmo a possibilidade de ingerência do Exército sobre a Polícia Militar: o comandante do Exército pode indicar o comandante geral da Polícia Militar (embora isso ainda não tenha acontecido depois da transição política, essa sobreposição legal de funções deixa em aberto a possibilidade de uma disputa ente o comandante do Exército e o governador do estado no tema da segurança pública). Com a subordinação da PM ao Exército, até mesmo as decisões sobre compra de armamentos da primeira deve passar pelo crivo do segundo. Outro problema da militarização é que soldados, cabos, sargentos e oficiais das polícias militares não podem fazer greve, organizar sindicatos, reivindicar direitos ou se manifestar, sob risco de prisão. É por isso que a militarização acaba se tornando um instrumento de opressão contra os próprios policiais