Parece inacreditável que o discurso golpista de Bolsonaro tenha conseguido se travestir de retórica da liberdade. Como isso foi possível? A resposta depende de entender o que está se chamando de liberdade. O que significa dizer que um indivíduo numa ilha deserta é livre? Do que exatamente ele é livre? A liberdade como não ser coagido é o que na tradição liberal se chamou de liberdade “negativa” – p. ex. o direito de ir e vir sem ser forçado nem impedido. Acontece que é essa mesma noção de liberdade, se radicalizada, que passa a ver qualquer obstáculo como algo a ser retirado. Hegel chamava essa noção – quando colocada de maneira unilateral – de fúria da destruição: é a liberdade do fanático, que só reconhece a si mesmo e que nega toda diferença, acabando por tomar as próprias instituições apenas como meios de restringir sua liberdade. É o egocentrismo da liberdade, como uma criança birrenta que exige do mundo a satisfação de todos os seus caprichos. Não por acaso quem hoje reivindica essa liberdade se reconhece numa figura narcisista da personalidade autoritária que se assume como o imbrochável e o imorrível (oi?) que nada teme.
Acontece que a democracia exige limites, e o principal deles é diante de quem atenta contra ela própria. A liberdade que a democracia requer é uma liberdade sobretudo social porque significa pressupor as condições para que cada indivíduo possa exercer sua liberdade. O mesmo Hegel via essa liberdade enquanto sentimento expressa no amor e na amizade: se reconhece livremente limites na relação com o outro, mas é através dela que o indivíduo é plenamente livre. Certamente, viver em sociedade é muito mais complexo, mas a lógica é a mesma: descobrir que ela exige lidar com limites necessários para a coesão social de modo a garantir a convivência em meio à pluralidade e à diferença. E o principal papel das instituições democráticas é saber dar um basta na infantilidade de quem acha que ser livre é andar sem máscara e invadir a esplanada.