Minha Avó materna, Passinha Agra, faleceu aos 93 anos e foi, ao que me lembre, a última pessoa que vi ser velada em casa, o féretro ocupando a sala de estar, a multidão de pessoas sobrando por todos os cômodos. Mas era a sua vontade e nós sempre levamos a sério os últimos desejos de nossos mortos.
Como em praticamente todos os velórios da família, esse teve momentos tristes, lindos, emocionantes, música, belas músicas que Vovó tanto apreciava, a gente dançando na rua ao som de Bandeira Branca, mas o que vou contar agora é o episódio envolvendo a mim, uma parente meio brigada com a família que decidiu vir fazer um gesto dramático de reconciliação no velório e minha Mãe.
A parente, depois de fazer um eloquente discurso (tinha que ser parente, com essa vocação atávica para discursar em velórios), expulsou minha irmã de onde estava sentada, girou os olhos pela sala conferindo quem estava presente e perguntou a Mamãe:
– Não estou vendo Fulana. Onde ela está?
Eu, que estava próxima, resolvi por razões obstétricas responder:
– Ela não pôde vir porque pariu há pouco tempo.
A parente me olhou de cima abaixo, elevou o queixo e disse autoritariamente:
– Que absurdo. Por acaso ela é uma vaca para parir? Quem é você para usar um verbo assim tão insultuoso?
Mamãe:
– Ela é minha filha, Parenta. A que é obstetra.
Eu, sabendo da arrogância da parente, cheia de títulos acadêmicos, acrescentei:
– DOUTORA em Obstetricia, na verdade. Pesquisadora sobre partos.
Ela torceu o nariz:
– HUMPF. Se for assim tão inteligente, me diga menina, como se conjuga PARIR? Qual a primeira pessoa do singular do presente do indicativo?
– Há divergências, naturalmente, mas entendo que PARIR é um verbo defectivo e não se conjuga na primeira pessoa do singular do presente do indicativo. Há quem defenda a irregularidade “eu pairo” mas particularmente eu não gosto por dar a entender que a mulher pode estar PAIRANDO na cena do parto, isso me causa certa angústia obstétrica. Mas o certo é que Fulana na terceira pessoa do singular do pretérito perfeito PARIU. E está muito bem parida, obrigada.
Nem sei como Vovó não levantou do túmulo (no caso, do caixão) porque nisso as nossas vozes – a minha e a da doutora literata Parenta já estavam muito altas. 😎
Inesperadamente, diante de se ver confrontada, pois raros são os que ousam contradizê-la, a Parenta sorriu:
– Muito inteligente a sua filha, Léa Amorim. Precisamos nos encontrar para discutir conjugações verbais.
O velório seguiu e nunca mais a encontrei, pois fiquei muito ocupada com partos, partos e mais partos.
Na Missa de Sétimo Dia de Vovó, redigi um Magnificat para ela, distribuído a todos os presentes em que me referia aos 12 filhos que PARIU. Assim, em CAPS LOCK.
😎