Não há dúvidas entre quem entende razoavelmente de política que Jair Bolsonaro e o movimento que lhe ampara – chamado de bolsonarismo – está à direita. Ao extremo da direita. Do mesmo modo, não pode haver dúvidas de que o negacionismo científico é parte determinante da identidade construída por esse líder, seu movimento e seu governo.
Essas constatações, desgraçadamente óbvias, no entanto, tem gerado um confusão interpretativa bastante danosa se entendemos que o negacionismo científico é um problema que drena recursos coletivos e pode custar vidas: a de que a negação da ciência em favor dos dogmas tribais de grupos sociais se dá entre os que estão à direita no espectro político-ideológico. Que seria uma espécie de propriedade dos fanáticos bolsonaristas.
Nada mais falso.
Emily Pechar, Thomas Bernauer e Frederick Mayer publicaram um interessante estudo no periódico científico Science Communication em 2018. O trio de pesquisadores buscou verificar se havia, efetivamente, algum tipo de assimetria no uso da ciência como referência de conhecimento com base na posição dos sujeitos no espectro político-ideológico. Jogando para o Brasil, seria como defender que bolsonaristas são os negacionistas e seus opositores, à sua esquerda, seriam menos ou nada negacionistas.
É fácil pensar assim na medida em que a hegemonia da hora é bolsonarista, mas o que o estudo demonstra é que a a relação dos indivíduos com a ciência não é determinada por suas convicções ideológicas de esquerda ou de direita: mas por suas convições ideológicas (e ponto) e suas atitudes face a governos e corporações.
O que isso quer dizer? Quer dizer que a ciência funciona, via de regra, como muleta de confirmação de convicções prévias, de dogmas, do seu sistema de crenças e valores. E quando as evidências científicas demonstram a invalidade dessas mesmas coisas? Aí descarta-se a ciência, saca-se qualquer sorte de teorias conspiratórias, de elucubrações idossincráticas para colocar em suspeição a lisura de cientistas e de pesquisas realizadas que apresentam aqueles resultados.
O estudo mostra que se o cabra está à direita, diante de um governo de direita ou extrema-direita, e deposita um fé grande numa ideia de livre mercado, que tem uma posição pró-corporações como uma obra de fé, sua tendência será dizer que é falsa a constatação científica de que indústrias são agentes determinantes para a existência do fenômeno das mudanças climáticas. A defesa, então, passa a ser a da indústria, acima de tudo, de todos, da ciência, contra investidas políticas de regulação e restrições.
Do outro lado, esses mesmos abraçarão a ciência como muleta de confirmação na defesa de que alimentos geneticamente modificados não fazem mal à saúde. Seus adversários à esquerda, farão o contrário e assumem a mesma postura em relação à ciência que seu opositores de direita assumiram no exemplo acima. Ao contrário das evidências científicas, desqualificarão pesquisas, cientistas, evidências e sustentarão, com a força da fé que lhe confere uma identidade social de grupo, a crença de que alimentos geneticamente modificados provocam todos os males possíveis à saúde humana.
Aplicando as conclusões ao Brasil, podemos ver como o bolsonarismo descarta o conhecimento científico se é para defender a inexistência das mudanças climáticas ou a existência do tratamento precoce para a COVID-19 como ivermectina e hidoxicloroquina. A lista é enorme, eu sei. Mas do outro lado não é diferente. À esquerda, não vai ter santo que convença um partidário da homeopatia de seu uso é ineficiente como atesta um abundante acúmulo de revisões sistemáticas de pesquisas, de evidências científicas.
Assim como vai ser impossível convencer de que flúor na água e no creme dental não provoca câncer ou que a combinação de certos alimentos numa dieta lhe tonará imune ao câncer: um guru soteropolitano pregador de coisa do tipo, inclusive, faleceu vítima de um. Mas isso também não contaria para essas pessoas. Cheguei até a ouvir que o câncer teria sido derivado de muitos estresses oriundos de um casamento sofrido. A terapia do cara não conseguiu salvá-lo nem dos supostos efeitos cancerígenos de um casamento infeliz. A operação era para salvar aquilo que o próprio sujeito falsificou com sua morte.
Mas não achem que só existem separações entre bolsonaristas e antibolsonaristas nesse seara. Vejam o próprio movimento antivacina unindo pelas mãos da fé anticiência esses grupos antagônicos. Eu sei que Bolsonaro usou a metáfora absurda do jacaré, mas não faltam aos cautelosos da hora a crença de que a vacina como tecnologia de RNA vai nos provocar alguma mutação. Ou seja, não há muita distância entre o Jacaré bolsonarista e a mutação antibolsonarista e nenhum na desconfiança e tendência a não se vacinar.
Vejam a própria França, berço do Iluminismo: apenas 40% dizem estar pensando em se vacinar neste momento. Um número vertiginosamente maior de antivacinas do que no país de Bolsonaro.
Bem, a lista é extensa. O que fazem as pessoas com a ciência não é em nada distinto do que faz um protestante neopentecostal quando diz, tal como Alexandre Garcia a Jair Bolsonaro, que ele é a prova de que a corrente dos não sei quantos pastores o curou da AIDS, do câncer ou da paralisia motora. Muitos se dizem curados, diariamente, com pseudoterapias.
A Ciência, em geral, só importa e é usada como fonte de conhecimento e orientação se serve ao endosso de meus sistemas de crenças e valores, de meus dogmas. Da minha fé. O modo como os sujeitos lidam com o conhecimento que usam para balizar seus comportamentos é essencialmente religioso e não científico. A ciência é, via de regra, um ator marginal. A religiosidade é o imperativo social das condutas humanas.
Não é à toa que as ciências cognitivas nos mostram que lidamos de maneira muito parecida com a aquisição e processamento de informações. Há quem queria colocar-se num patamar estranho de superioridade em relação ao outro convocando supostas capacidades cognitivas que diferenciariam pessoas no modo como tratam informações: e o outro nunca é melhor do que eu nessa lógica. 🙂
Essas diferenças existem, mas são praticamente irrelevantes quando se trata de lidar com informações. O que se sabe é que os sujeitos tendem a lidar com a aquisição de conhecimento evitando dissonâncias cognitivas, ou seja, descartando aquilo que invalida suas convicções e crenças, e buscando o que se chama de viés de confirmação: retemos aquilo que reforça nossos pré-conceitos. A ponto, como se viu, de jogar a ciência no lixo num ato e, no seguinte, abraçá-la como apoio confirmativo.
Então? Onde está o problema? O problema está quanto a religiosidade do conhecimento invade as instituições e balizam políticas públicas, gerando custos públicos com pseudociência e charlatanismo e negações científicas que custam vidas humanas, saúde e bem-estar social e político. E é a isso que temos que nos ater. O separatismo liberal da Igreja do Estado não é ato de virtude social e política de uma nação. Nunca foi. É um ato institucional.
E é por isso que as instituições importam e, se enfraquecidas, podem ruir pelas mãos do fanatismo (a tirania) da maioria.