A ordem do dia assinada ontem pelo general Walter Braga Netto, ministro da Defesa recém nomeado por Bolsonaro, em alusão aos 57 anos do golpe civil-militar de 1964 completados hoje, 31, é uma impostura intelectual, moral e histórica. Havia muita expectativa sobre o conteúdo do texto, já que no ano passado, o governo Bolsonaro tinha sido impedido de comemorar o evento, como era do seu desejo, por uma ação movida pela deputada Natália Benevides (PT-RN). Contra a decisão liminar emitida pelo TRF-5, a Advocacia Geral da União (AGU) havia recorrido, ganhando a causa escudada no absurdo argumento de que não se podia evitar uma discussão sobre o tema.
O que estava em jogo era uma ordem do dia, assinada pelo então ministro Fernando Azevedo e Silva, onde se diz “Naquele período convulsionado, o ambiente da Guerra Fria penetrava no Brasil. Ingredientes utópicos embalavam sonhos com promessas de igualdades fáceis e liberdades mágicas, engodos que atraíam até os bem-intencionados. As instituições se moveram para sustentar a democracia, diante das pressões de grupos que lutavam pelo poder. As instabilidades e os conflitos recrudesciam e se disseminavam sem controle.” Pela nota do ministro de então, a “sociedade brasileira, os empresários e a imprensa entenderam as ameaças daquele momento, se aliaram e reagiram. As Forças Armadas assumiram a responsabilidade de conter aquela escalada, com todos os desgastes previsíveis”, concluindo que o “movimento de 1964” (não o golpe, como todos historiadores o nominam) teria sido “um marco para a democracia brasileira. Muito mais pelo que evitou.”
Obviamente que um texto dessa natureza não tem nenhuma sustentação nas evidências fartamente conhecidas pela documentação acessada pelos historiadores. Estes, que travam diversas polêmicas sobre muitos aspectos da própria ditadura, não hesitam em dizer que em 1964 houve um golpe, ao qual se seguiu uma brutal ditadura. Ou seja, não há nenhuma divergência sobre o assunto da parte de quem pesquisa os documentos e escreve a nossa história.
A nota do general Braga Netto, diferente do que alguns disseram ontem, não tem, de modo algum, um conteúdo moderado. Como o texto do ano passado, o documento divulgado ontem pelo ministro da Defesa, em essência, tem o mesmo conteúdo do documento anterior, pois justifica o golpe como se fosse uma salvaguarda para a democracia, praticada pelas Forças Armadas, que atendendo ao chamado de “brasileiros [que] perceberam a emergência e se movimentaram nas ruas, com amplo apoio da imprensa, de lideranças políticas, das igrejas, do segmento empresarial, de diversos setores da sociedade organizada e das Forças Armadas, interrompendo a escalada conflitiva, resultando no chamado movimento de 31 de março de 1964”. Igualmente o texto diz que o “movimento de 1964” deve ser “compreendido e celebrado”.
Entre 2011 e 2019, as Forças Armadas foram impedidas de divulgar ordens do dia com conteúdos celebrativos ao golpe e à ditadura. Isso aconteceu porque as imposturas intelectuais, morais e históricas, não podiam ser lançadas na cara de um país que apenas caminhava para consolidar sua democracia, depois de 21 anos de arbítrio e barbárie. Desde a eleição de Bolsonaro, contudo, há quem deseje comemorar o golpe. Celebrar o golpe de 1964, que inaugurou a ditadura, é uma impostura moral, uma agressão à memória das milhares de vítimas . Há quem argumente que contexto precisa ser compreendido e que, portanto, as pessoas da época perceberam a necessidade do “movimento”, e isso é uma verdadeira impostura intelectual, porque não há malabarismo que sustente isso. Por fim, há quem justifique, de algum modo, constitui numa uma impostura histórica, pois não se pode justificar o arbítrio de nenhum modo.
É verdade que o negacionismo histórico praticado hoje pelo governo, que lhe move para praticar tantas imposturas e a ameaçar a sociedade, não deixa de se alimentar de um certo revisionismo que a viceja na academia desde os anos 1990. Diante de tais intepretações, temos que nos entrincheirar em defesa da democracia, contra os arroubos de autoritarismo e o negacionismo histórico.