Andei refletindo sobre este estado de profunda depressão que estamos vivendo no Brasil. Tentando entender o que é isso. Acabei chegando a uma conclusão: a situação atual é diferente de todas as situações anteriores que vivemos. E qual é essa diferença essencial? A diferença essencial é que o futuro morreu.
Quando criança, lembro do general Figueiredo posando com seus cavalos no horário nobre. Não entendia bem aquilo, mas a atmosfera geral era de abertura, de mudança, de novidade.
O desbunde cultural dos anos 80, a estabilidade e o crescimento econômicos dos anos 90, a inclusão social dos anos 2000. A sensação que pairava no ar era simples: o Brasil não tem como dar errado. Agora seria irreversível.
Por isso, sempre achei estranha a ironia da famosa definição de Stephan Zweig: Brasil, um país do futuro. Sempre me pareceu estranhíssimo imaginar que exista um filme distópico chamado Brazil.
Pode ter sido ingenuidade. Mas cresci com aquela promessa de Oswald de Andrade: o Brasil seria um país do século XXI. A revolução caraíba. A crise da filosofia messiânica. As culturas matriarcais do Hemisfério Sul seriam um norte para a reorganização da civilização, agora global.A diversidade étnica, a diversidade cultural, a diversidade dos biomas, a diversidade da fauna, a diversidade religiosa, a diversidade sexual. Diversidade: única lei da vida.
Tudo parecia se encaminhar para um aumento gradativo de diversidade. E, nesse sentido, o Brasil seria mais do que um protagonista. Seria um exemplo a ser seguido pelo mundo.
Ao mesmo tempo, tudo estava por ser feito. Milhões de pessoas querendo trabalhar. Milhões de pessoas querendo ser ouvidas. Milhões de pessoas querendo produzir. Milhões e milhões de pessoas que seriam aos poucos assimiladas e emancipadas. Uma potência ainda virgem.
Nunca gostei de nostalgia e de idealizações do passado. Claro que nesses tempos passados havia desigualdade, misoginia, violência de gênero e de cor. Isso não é circunstancial no Brasil. Isso é a estrutura fundacional de tudo aqui.
Mas havia um contrapeso potente a estas violências e injustiças: o futuro. A sensação de que esses problemas poderiam aos poucos ser dirimidos, corrigidos, atenuados e virtualmente extintos.
Podemos viver sem passado. Basta dilatar o presente. E absorver cada experiência nova como se fosse eterna. Podemos viver sem presente. Basta expandirmos as camadas do passado. Decantar cada vez mais as formas vivas da memória. Mas não podemos viver sem futuro. Vida e futuro são sinônimos. Palavras gêmeas. Inseparáveis.
Este abismo em que estamos mergulhados tem diversos nomes: esgotamento, cansaço, destruição, fascismo, absurdo, devastação, ausência de sentido, violência sistêmica, atraso, demência coletiva, becos sem saída, falta de projeto, desumanidade. Poderia passar o dia enumerando outros.
Entretanto, acima de tudo, o que une todos esses adjetivos e substantivos negativos é uma simples e singela sensação. Uma sensação a cada dia mais presente, pelo menos para mim: o futuro morreu. Não somos apenas testemunhas da sua morte. Somos seus assassinos e seus coveiros.
EXTRA
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Sobre o professor
Rodrigo Petronio nasceu em 1975, em São Paulo. Escritor e filósofo, atua na fronteira entre literatura, semiologia, narratividade e filosofia. Professor Titular da Faculdade de Comunicação da Fundação Armando Álvares Penteado [FAAP]. Pesquisador associado do Centro de Tecnologias da Inteligência e Design Digital [TIDD|PUC-SP], sob a supervisão de Lucia Santaella desenvolveu uma pesquisa de pós-doutorado sobre a obra de Alfred North Whitehead e as ontologias e cosmologias contemporâneas [2018-2020]. Membro desde 2017 do grupo de pesquisa TransObjetos do TIDD|PUC-SP. Autor, organizador e editor de diversas obras. Doutor em Literatura Comparada pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro [UERJ]. Desenvolveu doutorado sanduíche como bolsista Capes na Stanford University, sob orientação de Hans Ulrich Gumbrecht. Formado em Letras Clássicas [USP], tem dois Mestrados: em Ciência da Religião [PUC-SP], sobre o filósofo contemporâneo Peter Sloterdijk, e em Literatura Comparada [UERJ], sobre literatura e filosofia na Renascença. Atualmente atua na FAAP como professor-coordenador de dois cursos de pós-graduação: Escrita Criativa e Roteiro para Audiovisual. Membro desde 2014 do Laboratório de Estudos Pós-Disciplinares do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo [IEB-USP]. Criou e ministrou durante dois anos o Curso Livre de Filosofia [2015-2017] e ministra desde 2014 a Oficina de Escrita Criativa Casa Contemporânea. Há quinze anos ministra oficinas e cursos livres em diversas instituições como a Casa do Saber, a Fundação Ema Klabin, o Sesc e o Museu da Imagem e do Som [MIS], onde criou e coordenou o Centro Interdisciplinar de Narratividade [2012-2014]. Atua no mercado editorial há 24 anos [1995-2019], tendo trabalhado em para dezenas de editoras em centenas de livros como editor, preparador, revisor, copidesque, redator, tradutor e autor. Trabalhou no jornal Folha de S.Paulo [2000-2002] como leitor crítico de informação. Há quinze anos colabora regularmente com diversos veículos da imprensa, sendo atualmente colunista da revista Filosofia e colaborador regular dos jornais Valor Econômico e O Estado de S.Paulo. Publicou mais de duas centenas de artigos, resenhas e ensaios em alguns dos principais veículos da imprensa brasileira. Recebeu prêmios nacionais e internacionais nas categorias poesia, prosa de ficção e ensaio. Tem poemas, contos e ensaios publicados em revistas nacionais e estrangeiras. Participou de encontros de escritores e ministrou cursos em instituições brasileiras, em Portugal e no México. É autor dos livros História Natural [poemas, 2000], Transversal do Tempo [ensaios, 2002], Assinatura do Sol [poemas, Lisboa, 2005], Pedra de Luz [poemas, 2005], Venho de um país selvagem [poemas, 2009], entre outros. É autor também Matias Aires [2012], Odorico Mendes [2013], Oliveira Lima [2014] e Pedro Calmon [prelo], ensaios críticos e biográficos destes intelectuais brasileiros, publicados pela Série Essencial da Academia Brasileira de Letras. Organizador dos três volumes das Obras Completas do filósofo brasileiro Vicente Ferreira da Silva [Editora É, 2010-2012]. Coorganizador com Rosa Alice Branco do livro Animal Olhar [Escrituras, 2005], primeira antologia do poeta português António Ramos Rosa publicada no Brasil. Divide com Rodrigo Maltez Novaes a coordenação editorial das Obras Completas do filósofo Vilém Flusser pela Editora É que prevê a publicação dos primeiros vinte títulos entre 2018-2019. Coorganizador com Clarissa De Franco do livro Crença e Evidência: Aproximações e Controvérsias entre Religião e Teoria Evolucionária no Pensamento Contemporâneo [Unisinos, 2014], conjunto de artigos acadêmicos de professores brasileiros e estrangeiros sobre as relações entre ateísmo, religião e darwinismo. O livro Pedra de Luz foi finalista do Prêmio Jabuti 2006. A obra Venho de um País Selvagem recebeu o Prêmio Nacional ALB/Braskem (2007) e o Prêmio da Fundação Biblioteca Nacional (2009).
(Texto informado pelo autor – reproduzido da plataforma Lattes, nesta data)