Eu acho, na verdade, que arrogante é quem julga que, por definição, o eleitor do Bolsonaro não pode ser considerado burro. É como dizer: essas pessoas são assim mesmo, não podemos esperar mais nada delas. É negar a possibilidade de agência. É desumanizar.
Curiosamente, isso se funde com um discurso na aparência oposto: a velha fantasia de tantos pensadores políticos, de que o povo é necessariamente sábio.
Os romanos diziam: “vox populi, voz dei”. Maquiavel garantia que o povo sempre escolhia bem seus governantes. A Revolução Francesa entronizou o povo como o polo virtuoso, inaugurando uma tradição que permanece. Michelet, no século XIX, deu-lhe a expressão mais eloquente: “Ocorre em nacionalidade o mesmo que na geologia: o calor está embaixo. Quanto mais se desce, mais ele aumenta; nas camadas inferiores é escaldante. Os pobres amam a França como se tivessem obrigações e deveres com ela. Os ricos amam-na como se ela lhes pertencesse e lhes devesse favores. O patriotismo dos primeiros é o sentido e o dever; o dos outros, a exigência, a pretensão de um direito”.
Mas o povo é, como unidade, uma abstração. Sua unidade é o produto, sempre em disputa, de uma luta política. E o fato de que pessoas em condições similares sejam capazes de produzir reações e afetos diferentes mostra o quanto é arrogante e preconceituoso determinar que não há qualquer responsabilidade pelas opções que são feitas.
E, como tudo que é humano, o povo é um produto de suas condições sociais e de sua história.
Seu “lugar de fala” é como qualquer outro: não lhe confere nenhum privilégio epistêmico.
Um dos pontos fortes do marxismo, para mim, sempre foi esse: estar decididamente ao lado da classe trabalhadora sem mitificar sua consciência, sem negar o peso da ideologia e da alienação.
O desespero explica muitos comportamentos. Mas se esses comportamentos envolvem, por exemplo, uma incapacidade de conectar ações e consequências, agentes e motivações, ou de perseguir os próprios interesses a médio prazo, como posso adjetivá-los?
Cabe entender como essa incapacidade é produzida (e nunca deixo de louvar o trabalho de quem está pesquisando isso).
Cabe entender também por que nós, o campo da esquerda, não temos sido competentes para combatê-la.
Creio que pagamos o alto preço do desinvestimento na educação política. E educação política, convém lembrar, não é “doutrinação”. É desfazer o trabalho da ideologia e contribuir para que os despossuídos se construam como pessoas capazes de pensamento autônomo.
Lembro de um trecho de Afetos ferozes, as memórias de Vivian Gornick, que li recentemente. Falando de seus vizinhos no Bronx, no entreguerras, ela escreve: “as pessoas que trabalhavam como bombeiros, padeiros ou operadores de máquinas de costura haviam se percebido como pensadores, poetas e eruditos pelo fato de serem membros do Partido Comunista”.
Acho melhor pensar que essa é uma possibilidade a ser construída do que permanecer no refúgio fácil da condescendência, que julga que “não tem como” ser diferente e, por isso, absolve a priori a tudo e todos.
E um PS. Quando externei minha frustração com o aumento da popularidade do genocida (sim, frustração, não consigo afetar a superioridade olímpica de quem vê nossa catástrofe com distanciamento), creditei-o a dois fatores: burrice e perversidade de seus apoiadores. Curiosamente, muitos se levantaram contra a caracterização como “burrice”, mas ninguém contra a caracterização como “perversidade” – que considero muito pior. Tenho mais simpatia por quem se deixa enganar por algum santinho do pau oco do que por quem adere a um culto da violência e da morte. E, naturalmente, temos que entender por que estamos sofrendo essa derrota também no campo dos valores ético-políticos mais básicos.
– Professor titular livre do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília, onde coordena o Grupo de Pesquisa sobre Democracia e Desigualdades (Demodê), e pesquisador do CNPq. Publicou, entre outros, os livros Democracia e representação: territórios em disputa (Editora Unesp, 2014), Dominação e resistência (Boitempo, 2018) e O colapso da democracia no Brasil: da Constituição ao golpe de 2016 (Expressão Popular, 2019).
(Texto informado pelo professor, reproduzido da plataforma Lattes)
A publicação repercutiu, e teve as réplicas da professora Esther Solano (UNIFESP) e do professor Antônio Augusto (UERJ), trazendo opiniões divergentes e outros pontos de vista, um importante debate:
Caro Luis Felipe, eu respeito seu trabalho enormemente mas neste ponto só posso discordar. Como dizer que eu desumanizo as pessoas com as que busco conversar durante horas (embora, muitas vezes, suas opiniões me agridam)? O faço porque acredito com firmeza na capacidade do dialogo e a escuta. Para mim dialogar é justamente humanizar. E não é que me coloque numa posição epistemologicamente superior, mas depois de anos entrevistando esse público acumulei muitos dados e, como cientista, acredito na potência dos dados e as observações para além dos achismos. Jamais tirei de ninguém a possibilidade de crescer, da crítica, da potência, mas, entrevistando pessoas empobrecidas ou vulneráveis, constato que a pobreza é uma força centrípeta que engole tudo. A experiência da pobreza é centralizadora, totalitária , nevrálgica, e faz com que muitas das atitudes que, desde fora da pobreza, são consideradas burras, desde dentro dela tenham outras dimensões e ganhem outras perspectivas. Já entrevistei pobres que votaram durante anos no PT e agora votam em Bolsonaro. Muitos deles sabem que os chamamos de burros e sentem por isso um ressentimento que os afasta ainda mais de nosso campo. Portanto, inclusive do ponto de vista estratégico, para falar com o publico popular e nos reaproximar dele, acho que o conceito burrice não deveria ser utilizado. Sem mais , com você sempre vale um bom debate
Esther Solano
Este é um dos raros textos em que não concordo de A a Z com o sempre lúcido e iluminista (para mim um grande elogio) Luis Felipe Miguel (o marxismo é a superação dialética que conserva os valores a serem preservados do Iluminismo). Não necessária nem principalmente o segundo parágrafo do texto [“Curiosamente, isso se funde com um discurso na aparência oposto: a velha fantasia de tantos pensadores políticos, de que o povo é necessariamente sábio”] decorre do primeiro parágrafo: [“Eu acho, na verdade, que arrogante é quem julga que, por definição, o eleitor do Bolsonaro não pode ser considerado burro. É como dizer: essas pessoas são assim mesmo, não podemos esperar mais nada delas. É negar a possibilidade de agência. É desumanizar.”]. Também é muito discutível a afirmação: “Mas o povo é, como unidade, uma abstração”. É certo que tudo depende da luta de classes, principalmente da sua forma principal, a luta política (luta econômica, e luta ideológica são as outras duas formas). Mas povo se alicerça numa definição objetiva da aliança de classes sociais capazes de impulsionarem transformações políticas e econômico-sociais progressistas. Este parágrafo é bastante interessante: [“O desespero explica muitos comportamentos. Mas se esses comportamentos envolvem, por exemplo, uma incapacidade de conectar ações e consequências, agentes e motivações, ou de perseguir os próprios interesses a médio prazo, como posso adjetivá-los?”}. Pois é, este o ritmo da batalha, vivemos uma situação – evidentemente sempre econômico-social e histórica – em que isso cada vez mais ocorre. Mas “burrice”, ou “perversidade”, por si só, estão longe de nos ajudar a entender o fenômeno. Tem a ver muito mais com a situação crônica de condições sócio-econômicas desumanas, consequente aviltamento de toda a vida social, com as derivações de uma situação histórica sempre dependente, consequências também do conjunto de embates políticos anteriores. E, sempre ao fundo, a tendência cada vez mais vampiresca, e sempre crescente, seguido o dinamismo espontâneo capitalista, do trabalho morto subjugar o trabalho vivo. Não me reporto aqui às muitas passagens em que obviamente temos a mais ampla concordância. Não há outro caminho do que o de travar a necessária luta política em condições que são tudo, menos fáceis.
Antônio Augusto
Como bom debatedor e democrata que é, Luis Felipe Miguel treplicou:
A discordância também é bem vinda!
Luis Felipe Miguel ao colega Antônio Rodrigues
Cara Esther, não gostaria que você lesse minhas observações como uma acusação pessoal. Eu também tento ler – e aprender – com seus comentários, para além de apenas me sentir atingido pelo seu “arrogante”. Tenho o maior respeito pelo seu trabalho, acho que já tive a possibilidade de demonstrar isso. De resto, acho: (1) Há nesse debate várias questões de fundo, sobre a relação entre experiência e consciência, que não têm respostas fáceis (e muito menos podem ser aprofundadas em postagens de Facebook). Eu penso que a esquerda se preocupou muito em se afastar – corretamente – da velha leitura autoritária da “falsa consciência” mas acabou chegando perto demais da visão liberal de que cada um é o melhor juiz de si mesmo, o que ainda foi piorado com o sucesso atual de uma leitura limitada dos lugares de elocução. Acho que é uma questão importante, tenho trabalhado com isso aqui e ali, sem chegar a nenhuma solução. (2) Entendo que falar em “burrice” afasta (mas tenho dúvida se esse ressentimento tem tanto peso; a direita sempre chamou os eleitores de Lula de burros e agora os está conquistando). Minha pretensão, porém, não é me dirigir a essas pessoas, mas construir um diagnóstico. A palavra “burro” me parece eficaz para desestabilizar um certo bom-mocismo condescendente, comum em nosso meio. E, uma vez que não se trata de um defeito genético, mas de uma construção social, leva à questão: o que estamos fazendo de errado para permitir que uma parcela tão grande de nossos concidadãos permaneçam com uma visão tão pouco esclarecida do mundo? (3) Por fim, minha crítica é dirigida aos bolsonaristas em geral, incluindo setores da classe média e média-baixa, que também são objetivamente prejudicados pelas políticas de um governante que, no entanto, apoiam. Abraço.
Luis Felipe à colega Esther Solano
Esther Solano ainda respondeu a tréplica:
Não se preocupe, não o tomo como pessoal, e sim como uma forma de questionamento de algumas das minhas práticas de trabalho e compreensão de Brasil, o que sempre é necessário. Cá entre nós, tomara que dentro da academia conseguíssemos debater sempre mais sem cair no “cancelamento”…
Esther Solano ao colega Luis Felipe Miguel
O diálogo ainda rendeu um comentário que endossamos e estendemos ao Luis Felipe, parabenizando a professora:
Esther Solano, parabéns. Diálogo e empatia são pra mim, sem dúvida a estrada para a saída do labirinto político, cultural e social em que entramos. Quem já teve oportunidade de trabalhar, pesquisar e aprender com algum trabalho de educação popular, pode vivenciar e se identificar com o que você disse. Parabéns pela colocação.
Marcio Vieira de Souza
Post original com os comentários: