Hoje eu recebi uma notificação extrajudicial da produtora Brasil Paralelo por um post que fiz no dia 11 de julho referente a um conteúdo indicado no material didático da Secretaria de Educação do Estado da Bahia. Naquele dia, após tomar conhecimento de que o material destinado ao ensino online para estudantes da escola pública trazia ao menos uma indicação da produtora gaúcha, escrevi o seguinte:
“Soube agora que o caderno de apoio para o ensino de História da Secretaria de Educação do Estado da Bahia tem a indicação de um vídeo da produtora do Brasil Paralelo. Para quem não sabe essa produtora é olavista e, pelo que dizem, vem sendo vitaminada por verbas do governo Bolsonaro através da compra de séries para o MEC. Para quem não sabe o governo da Bahia é comandado pelo PT desde 2006. O Brasil Paralelo não é uma produtora qualquer, mas um canal que produz “conteúdo” de história de caráter revisionista/negacionista. Seu filme mais importante, Brasil, entre armas e livros, sobre o golpe de 1964, é uma peça de propaganda ideológica anticomunista sem nenhum respaldo científico. Atenção professores de História da Rede Púbica estadual, Secretaria de Educação do estado da Bahia e governador Rui Costa. Negacionismo e falsificação da história é caminho aberto para o fascismo. É preciso rever urgentemente esse material didático.”
Meu post teve boa repercussão e eu recebi o retorno educado de várias pessoas ligadas à SEC-BA que esclareceram o assunto, dizendo que o reparo seria feito. De fato, no mesmo dia eu soube que a indicação foi retirada, algo que considerei uma vitória em nome dos meus amigos e amigas historiadores que nesses tempos tem lutado com todas as suas forças pelo respeito a verdade.
A Brasil Paralelo é uma grande empresa que nos últimos anos cresceu na esteira do ódio à política e da ideia de que professores de História são doutrinadores. Supõe, a produtora, que eles são “apartidários e imparciais”, por isso disseminam a tese de que todos que assistem TV, leem jornais ou tiveram professores de História são “manipulados”. Alegam, entre outras coisas, que o sucesso das suas produções não é fruto do ódio à política, nem da eclosão da pós-verdade, quando apelos à emoção, crenças e ideologias têm mais influência em moldar a opinião pública do que fatos objetivos. Para a Brasil Paralelo, seu sucesso decorre da “imparcialidade” e da “desvinculação de grupos políticos”, motivo pelo qual se arrogam de não receber nenhum centavo de dinheiro público, em que pese que algumas de suas produções sejam exibidas pela TV Escola.
A produtora se ressente de eu tê-la chamado de “olavista”, argumentando por absurdo ser confundida com qualquer “grupo ou indivíduo em específico”. É claro que ela não se importa de usar a exaustão as referências de Olavo de Carvalho que, não raro, aparece em suas produções, ignorando qualquer historiador ou consenso estabelecido dentro da academia. Do mesmo modo, se ofende por ser chamada de ‘revisionista/negacionista”, arguindo que suas produções são feitas “a partir de robusto arcabouço documental” e “examinado por uma equipe de mais de 30 profissionais”.
Na década de 1990, ficou célebre o caso em que a historiadora estadunidense Deborah Lipstadt, teve que enfrentar nos tribunais o negacionista britânico David Irving. Lipstadt, narrou sua saga contra o negacionismo em um belo livro chamado Negação, publicado no Brasil em 2017 e transformado em um ótimo filme dirigido por Mick Jackson, com Rachel Weisz e Timothy Spall nos papéis principais. O negacionismo, como demonstrou a historiadora e professora da Universidade de Emory, é a porta de entrada da reabilitação do nazi-fascismo, de modo que a equipe de advogados que a defendeu em Londres traçou como estratégia provar que o Holocausto foi um irrefutável fato histórico.
No processo narrado em seu livro, Lipstadt demonstra que a negação do Holocausto era não apenas motivo de prestígio e riqueza de Irving, como também do interesse de grupos supremacistas e neonazistas de diversas partes do mundo, que sustentavam os argumentos no negacionista Irving, independente do que o consenso acadêmico dissesse e da consumada derrota do jornalista/historiador David Irving na justiça.
O negacionismo dos dias que correm têm muitas faces: científico, sobre as vacinas, terraplanista, sobre as mudanças climáticas e sobre a história. Tenho me interessado por esse tema a partir dos estudos que venho desenvolvendo sobre a relação entre memória e história e sobre aquilo que alguns de nós chamamos de revisionismo, presente na academia. Todavia, porquanto a verdade tem sido desafiada em diversas frentes, creio ser absolutamente necessário que sejamos capazes de defendê-la diante dos irracionalistas e todos aqueles que desafiam o bom senso, o respeito e a democracia quando promovem a desconfiança e o ódio contra cientistas, artistas, jornalistas e professores de história.
Não sou o único a sofrer uma tentativa de intimidação da parte da Brasil Paralelo. Tenho, próximo de mim, jovens estudantes que vem sendo alvo de investidas da produtora que deve dispor de muito dinheiro para mobilizar escritórios de advocacia para tentar impedir que pós-graduandos desenvolvam pesquisas e publiquem suas conclusões sobre o assunto pelas pós-graduações do Brasil, além de professores e outras pessoas que lhe apontem o dedo em variados espaços, inclusive na rede social.
Como escreveu o historiador franco-judeu Pierre Vidal-Naquet, no magnífico Os assassinos da memória,
“podemos e devemos discutir sobre os ‘revisionistas’ [negacionistas]; podemos analisar os seus textos como fazemos a anatomia de uma mentira: podemos e devemos analisar o lugar específico na configuração das ideologias, questionar-nos sobre o porquê e como apareceram, mas não discutir com os ‘revisionistas’ [negacionistas]”.
Não tenho nenhum interesse em discutir a Brasil Paralelo e sua turma o conteúdo das suas produções, mas não me furtarei um único minuto a debater com professores, estudantes e quem mais tiver interesse sobre o porquê de não reconhecer credibilidade ao que é despejado na internet ou passa lamentavelmente em alguns canais de TV como se fosse “história”.
Como afirma Deborah Lipstadt,
“Precisamos conduzir uma luta implacável contra aqueles que encorajam – direta ou indiretamente – os outros a fazerem essas coisas. Mas, mesmo enquanto lutamos, não devemos imbuir nossos oponentes de uma importância primordial. Jamais devemos atribuir a nossa existência a seus ataques contra nós ou deixar nossa batalha contra eles se transformar em nossa razão de ser. E, enquanto os combatemos, devemos vesti-los com – ou forçá-los a vestirem sozinhos – uma fantasia de bobo da corte”.
A Brasil Paralelo espera de mim uma retratação sobre aquilo que escrevi no dia 11 de julho. Um dia depois de comemorar o Dia do Historiador, ocorrido neste 19 de agosto, eis aqui a única resposta que posso oferecer aos que me acompanham, já que não pretendo debater o que quer que seja com uma empresa que vem ganhando bastante dinheiro supostamente oferecendo “narrativas alternativas” Esse é para mim, como diz Pierre Vidal-Naquet, “o preço da coerência intelectual”.