Segue ai.
1) Primeiro, vamos às pessoas de boa-fé. Muita gente usa o termo “cultura do cancelamento” para falar da agressividade, da violência, das ameaças e do assédio moral nas redes sociais. Tudo isso existe. No entanto, ao chamar de “cultura do cancelamento” você, querendo ou não, está associando essa violência aos grupos, movimentos e pessoas pertencentes a minorias. E você precisa saber disso se quiser continuar usando o termo.
2) A associação entre “cultura do cancelamento” e movimentos feministas, negros, lgbttqia+ não é direta. É como a associação entre a designação “bandido” e um homem negro. Ela não é direta e justamente por isso ela é psiquica e historicamente tão eficiente. Quando você diz “fulano é bandido” você pode afirmar que não é racista mesmo sendo (assista à 13ª Emenda, documentário da Netflix). A mesma coisa vale para “cultura do cancelamento”. Ao usar, você está sendo racista, machista, lgbtfóbico. Quer usar? Usa…
3) “Cultura do cancelamento” é, portanto, um pânico moral, assim como seu antecessor o “politicamente correto”. Este último foi e ainda é usado para transformar reivindicações por direitos em uma questão de etiqueta. As pessoas que me leem sabem onde eu costumo mandar socar a etiqueta, então, nesse texto, vou poupá-los. O pânico moral se dissemina entre pessoas que se veem assustadas porque tudo que dizem é questionado do ponto de vista da raça, do gênero, da sexualidade e, antes de pensar que esses questionamentos vêm, em geral, porque estão sendo racistas, machistas ou lgbtfóbicas, vocês já reagem. Reagem sem pensar. É instinto de proteção. Assim, é fácil chamar logo de “cancelamento” o que é crítica. E, dentre os mil comentários criticando, achar 10 xingando e começar a agir como uma criança mimada. Aliás, perdão às crianças. Começar a agir como homem, branco, hetéro, cis, mesmo que você não se encaixe em todas essas categorias. Na sociologia existe algo chamado “tipo ideal”, mas não vou explicar porque não estou em sala de aula. Agir praticando o que mais sabem fazer: gaslighting, ou seja, distorcendo o que o outro diz para se fazer de vítima.
4) Ainda sobre as pessoas de boa-fé, além do instinto de preservação que faz com que, no fundo, elas também estejam protegendo a si mesmas de se verem como racistas, misóginas, transfóbicas, etc etc, existe uma falta de contato com os movimentos sociais de mulheres, de indígenas, de negros e negras, de pessoas com deficiência. Hoje em dia, todo mundo que tem um perfil numa rede social fala como se fosse militante ou ativista, sem nunca ter colocado os pés nos espaços dos movimentos sociais. Então, gente que “aprendeu” a debater essas questões políticas nas redes é mais facilmente capturada por pseudo-conceitos sobre métodos, princípios e pautas dos movimentos de minorias. Essa falta de contato com o movimento pode também vir acompanhada da falta de leitura sobre as teorias acerca de questões de gênero, raça e sexualidade. Quando perguntamos “qual foi a última mulher negra que você leu?” não é porque cobramos pedágio, é porque, em geral, você está falando alguma aberração teórica. Aliás, se lêssemos mais Lélia Gonzalez, o pânico moral da “cultura do cancelamento” se espalharia menos, pois é absolutamente claro que não faz sentido.
5) Agora, sobre as forças políticas que agem de má-fé neste debate. E, aqui, vou me restringir à grande imprensa porque já está longo demais o texto, mas também porque ela é bastante afeita à fabricação de pânicos morais de cunho racista, como o que disseminou, durante toda a década de 1990 a associação entre “magia negra” (vulgo, umbanda e candomblé) e crime; que publicou matéria de revista com o preço da cabeça do Cacique Babau (em 2009!); que estampou uma mulher negra na capa dizendo que ela decidiria as eleições como se fosse uma ameaça; que diariamente cumpre o papel de assessoria de comunicação das polícias falando de “troca de tiros” e “confronto” entre policiais e… veja bem, bandidos; que disseminou todo tipo de mentiras sobre movimentos sociais do MST à tática black bloc. Essa imprensa que nunca foi submetida a nenhum escrutínio público digno do nome, e circulava entre pessoas que assinavam um jornal em troca de afagos no ego, na era das redes sociais digitais, está tentando apagar seus rastros de várias formas. Uma delas é ampliando a representação (jamais a representatividade) de minorias em suas empresas. A outra é colocando seus colunistas para escrever sobre “cultura do cancelamento”, ou mesmo escrevendo editoriais sobre isso. Não é só no Brasil que se verifica o fenômeno. Ou seja, a grande mídia encontra, mais uma vez, um jeito de marcar seus alvos, agora, sem enunciá-los (são os de sempre, somos os de sempre) por meio desse tipo de discurso que pretende fazer a passagem de suas próprias práticas racistas, misóginas, capacitistas, xenófobas, para uma “crítica” aos movimentos e aos indivíduos que se identificam como minorias. Claro, sempre tomando o cuidado de dizer que “não são todos”, etc etc, que existe e bom militante e o mau militante. Essa passagem, de um passado preconceituoso, racista, violento, jagunceiro, para o aumento da representação e da sensibilidade com as minorias, precisava ser feita às claras, com muito trabalho de reparação. Para que isso não seja feito, inventaram uma “cultura do cancelamento”. Mas, enfim, esse é o tópico sobre má-fé, né?
6) Por fim, “cultura do cancelamento” é também uma troça, em código, como é habitual dos redutos das profundezas da misoginia na internet, com a construção teórica e militante sobre “cultura do estupro”, expressão que tentou e obteve relativo sucesso em deslocar os debates sobre estupro de uma suposta “natureza” que condenaria todos os homens e seria algo irrefreável. Foi por isso que se disse “cultura do estupro”, cultura como oposto à natureza. Existem debates, críticas, e limitações a esta oposição? Sim. Mas existe também um imenso ressentimento no fato de ela ter descortinado que o estupro é algo ensinado e incentivado por nós mesmos, por meio de uma série de práticas que vão das escolares às passadas de pano para os amigos “bêbados”. Então, mais uma vez, quer usar “cultura do cancelamento”? Usa… Mas não é de bom tom.
7) Assédio moral, violência, ameaça, percebam, são nomes que já existem e funcionam perfeitamente para descrever acontecimentos também nas redes sociais. Comportamentos assim acontecem pela própria dinâmica das redes que produz esse tipo de “cyberwar”. Elas são praticadas por uma multiplicidade de pessoas. Já há boa bibliografia sobre isso, sobre racismo algorítmico e muito mais. Não ponham na conta de quem é historicamente violentado a produção dessas novas violências (até porque costumamos debater e assumir as nossas práticas violentas com muito mais frequência e honestidade do que muita gente). Isso é o que nos constitui há séculos. Já chega.
EXTRA: como apontou meu amigo César ali nos comentários, há ainda a evidência de que “cultura do cancelamento” não existe quando se observa os número de seguidores dos “cancelados”. Eles costumam subir muito, demonstrando duas coisas: 1) “cancelamento” é engajamento; 2) Ser transfóbico, racista, misógino, capacitista faz sucesso.