Dia desses, Felipe Neto – a quem elogio constantemente, aliás – publicou um tuíte agressivo dirigido a um “vocês” que, imagina-se, éramos nós, cientistas da área de Humanas.
“Vocês” seríamos os culpados de “a maioria do povo continuar batendo palma pra execução de criminoso” porque não saíamos “dessas merdas desses tronos academicistas, falando em termos difíceis apenas pra quem estudou sociologia”.
E lacrou, no final: “Quem sobe no pedestal do intelecto não se comunica com quem tá na rua”.
Há pelo menos três equívocos óbvios no tuíte do youtuber (além, é claro, do tom).
Primeiro, a crença ingênua no poder da palavra de acadêmicos. Mano, os cientistas estão dizendo há séculos, de jeitos bem simples, que a terra é redonda – e ainda assim estamos onde estamos.
Vivemos um momento de guerra ao capital cultural. O prestígio acadêmico está longe de ser garantia de receptividade da audiência.
Depois, a ideia de que a complexidade do pensamento é necessariamente uma veleidade de quem quer “subir no pedestal do intelecto” – e não um reflexo da complexidade do mundo social.
Há setores da academia que são vulneráveis ao culto da complexidade pela complexidade, que acham que ela confere status (além de esconder o caráter muitas vezes pedestre do que de fato está sendo dito), que gozam com palavras difíceis e frases enroladas, que se refocilam num jargão impenetrável e desnecessário, de preferência em estrangeiro? Sem dúvida. (Não todos, felizmente.)
Mas isto não quer dizer que o treinamento acadêmico seja dispensável e que todo o conhecimento produzido na área das Ciências Humanas seja imediatamente acessível a qualquer um.
Acredito que quase tudo que se produz nas Humanas pode chegar ao leitor culto não especializado – desde que este leitor esteja disposto ao esforço intelectual necessário.
A vontade de buscar a melhor comunicação possível não pode se tornar uma exigência de simplificação. Afinal, nos esforçamos para entender a complexidade do mundo não por vaidade ou preciosismo, mas porque precisamos disto para melhor agir no sentido de transformá-lo.
A ciência opera na contramão do senso comum – por isso, é frequentemente preciso mais esforço para entendê-la do que para abraçar os preconceitos correntes.
O ambiente raso do “debate” nas redes sociais não é favorável ao exercício do pensamento crítico. Em 280 caracteres ou em um vídeo de 16 segundos, é mais fácil reproduzir slogans reacionários do que desconstruí-los. É mais fácil dizer que “bandido bom é bandido morto” ou que “pessoas de bem devem se armar para se proteger” do que explicar as raízes da violência e da criminalidade.
Lembro sempre do experimento de inteligência artificial da Microsoft, em 2016. A robô que devia aprender com a interação nas redes sociais teve que ser desativada em menos de 24 horas: tinha se tornado uma fascista, tuitando lemas da campanha de Trump.
Houve quem extraísse do caso lições sobre a natureza humana. Creio que não – afinal, era uma robô, não um humano. Mas ensina algo sobre a natureza do debate das redes sociais.
Não estou dizendo para desistir do combate, claro que não. Mas não há mágica. E voluntarismo não basta para derrotar o poder da ideologia.
Por fim, meu jovem xará erra na condenação aos pesquisadores que estariam se isolando na torre de marfim, ou melhor, no “pedestal do intelecto”.
Vejo, ao contrário, um esforço enorme de intervenção de uma grande parte dos nossos melhores pesquisadores – em blogs, em canais de Youtube, em podcasts, no Facebook, no Twitter.
É um esforço louvável. Nem sempre é coroado de êxito – divulgação científica também exige especialização e treinamento. Mas não dá para dizer que não estamos buscando diálogo com o grande público.
Na verdade, vejo um problema no sentido contrário ao indicado por Felipe Neto: um processo de apagamento da fronteira entre pesquisa científica e vulgarização.
A fronteira existe não por esnobismo ou reserva de mercado – e sim porque existem diferenças quanto ao grau possível de aprofundamento, de sofisticação teórica e metodológica, entre uma e outra.
Mas vejo divulgadores sendo aceitos como “referências centrais” mesmo em trabalhos acadêmicos. Vejo jovens pesquisadores julgando que se tornar guru de Youtube é a melhor maneira de obter consagração acadêmica. Vejo publicações científicas se curvando à lógica imediatista dos likes.
Outro dia, um colega comentou – sem nenhuma crítica aparente, apenas como curiosidade – que havia apresentado uma submissão a uma revista, não sei se brasileira ou estrangeira, e ela exigira que fossem encaminhados também os textos de dois tuítes, para divulgação caso o artigo fosse publicado.
É esse o caminho: o pesquisador tuiteiro? Sei que sou demodê, mas vejo neste processo uma grave ameaça à integridade do discurso científico.
Uma grande qualidade de Felipe Neto é que ele faz autocrítica. Podia fazê-la também em sua condenação apressada aos pesquisadores de Humanas.
Já que ele está preocupado com o discurso punitivista e assassino na segurança pública, podia convidar a seu canal algum especialista. Tem muita gente boa na área, muita mesmo, que faz trabalho sério e se comunica com competência. Com um empurrãozinho do influencer, iam ajudar milhares de pessoas a pensar melhor sobre o tema.