É óbvio que a ideia de Bolsonaro de restringir o arbítrio dos controladores das redes sociais para derrubar perfis ou remover conteúdos tem como único objetivo proteger suas próprias práticas de disseminação de mentiras e de ódio.
Isso não quer dizer que o poder destas empresas não seja um problema a ser enfrentado. Elas têm uma enorme capacidade de orientar o debate público – que usam em favor de seus interesses privados.
Podemos comemorar quando, pontualmente, mensagens sobre as maravilhas da cloroquina são tarjadas como mentirosas ou Donald Trump perde um palanque.
Mas não esqueçamos: este Facebook é o mesmo que tanto lucrou com os esquemas da Cambridge Analytica.
O mesmo que objetivamente incentiva os clickbaits, por meio de suas políticas de remuneração – e assim promove a desinformação, em escala milhares de vezes maior do que a combate com suas campanhas pífias de checagem de postagens.
O mesmo que usa todas as técnicas possíveis de captura do tempo dos usuários, a fim de maximizar a captura de dados, pouco ligando para os efeitos disso na vida humana.
O mesmo que desrespeita a cada minuto não apenas nosso direito à privacidade, mas o direito básico de manter a experiência humana livre de ser transformada em “matéria-prima grátis para práticas comerciais ocultas de extração, predição e vendas” (como escreveu Soshana Zuboff).
O mesmo que censura fotos de mulheres amamentando por serem “pornográficas” e críticas ao Estado genocida de Israel por sere, “racistas”.
O colunista “liberal” da Folha de S. Paulo critica hoje a proposta de Bolsonaro a partir de dois argumentos complementares.
Primeiro, porque não haveria censura nas redes sociais. Afinal, diz ele, o termo “censura” deve ser reservado “para situações em que o poder do Estado é usado para calar um cidadão”.
Depois, porque “liberdade de expressão” na verdade se reduz a liberdade de empresa. Ele diz isso de forma mais delicada: “‘liberdade de expressão’ designa o direito que as pessoas têm de dizer o que pensam sem sofrer consequências penais, não o acesso garantido a megafones. Jornais, rádios e TVs nunca tiveram a obrigação legal de dar espaço a todos os que desejassem aparecer”.
A safadeza está na expressão “todos os que desejassem aparecer”. Dá a entender que se trata de uma corrida pelos 15 minutos de fama.
Na verdade, trata-se de dar espaço para as diversas visões de mundo, propostas e perspectivas sociais.
Foi este o valor que fundamentou as defesas clássicas da liberdade de expressão no pensamento liberal – de John Milton, no século XVII, a John Stuart Mill, no século XIX.
A liberdade de expressão era vista como um direito coletivo: o direito que a sociedade tinha de ter acesso a diferentes discursos, a fim de que cada cidadão pudesse chegar autonomamente às suas próprias conclusões.
Se o alvo principal era a censura estatal, era porque, nas condições da época, tratava-se da grande ameaça.
Tenho certeza de que, hoje, como intelectuais honestos que eram, Milton e Stuart Mill estariam alertando contra as formas de censura privada – seja a dos conglomerados da mídia tradicional, seja a das gigantes da tecnologia.