Dedico essas minguadas reflexões a Edmundo Gaudêncio e Adeildo Pereira, mestres e queridos amigos, sempre me ensinando as coisas do mundo.
“Deixa lá dizer Pascal que o homem é um caniço pensante. Não; é uma errata pensante, isso sim. Cada estação da vida é uma edição, que corrige a anterior, e que será corrigida também, até a edição definitiva, que o editor dá de graça aos vermes. (…) Daqui inferi eu que a vida é o mais engenhoso dos fenômenos, porque só aguça a fome, com o fim de deparar a ocasião de comer, e não inventou os calos, senão porque eles aperfeiçoam a felicidade terrestre. Em verdade vos digo que toda sabedoria humana não vale um par de botas curtas”
(Machado de Assis, Memórias Póstumas de Brás Cubas, Obras Completas, vol. 1, p. 549-556).
Vaidades intelectuais: é delas que quero falar. E começo, como sempre, pedindo socorro aos autores de minha predileção, aqueles que me ensinam, sempre que os leio ou releio, que não sou nada, que não sei de nada. São muitos os que trataram do assunto. Por razões de espaço e pra não fugir ao aspecto fluido das postagens das tais redes sociais, limito-me a dois desses autores: Machado de Assis e Ariano Suassuna.
Ler Machado de Assis é coisa que faço regularmente, com curiosidade renovada e com a certeza, nunca desmentida, de que irei encontrar ali lições de sabedoria e reflexões poderosas sobre a miséria da condição humana, com suas vaidades, mesquinharias, jogos de aparência, etc. Enlevam-me, entre tantos aspectos, o olhar irônico, a melancolia, o ceticismo e a visão pessimista que caracterizam o seu eterno embate com a vida.
Ninguém, com efeito, escreveu de forma tão funda sobre a angústia de viver; ninguém temeu e interpelou tanto os homens, apenas suportando-os quando transfigurados em personagens, em arte, ficção. Fico com a impressão, relendo-lhe algumas passagens, que, não fosse o lenitivo da literatura e o escritor carioca teria sentido ainda mais o peso da existência. Assim não fosse e como desencantar os mistérios dessa estupenda vocação literária, tão intensa e prolixa, construída, cotidianamente, ao longo de quarenta anos, fixada em páginas de poesias, teatro, ensaios críticos, cartas, contos (escreveu cerca de duzentos), romances (nove) e crônicas (quase setecentas)?
Por fim, há o humor, onde o rir e o pensar tornam-se uma coisa só, instante único, ligados pela força das reflexões e ideias – ele gostava de dizer que tinha um trapézio no cérebro, onde pendurava as “ideias” – transformando o trágico em ridículo, o mistério em comédia e tornando, assim, mais leve e divertido, o enfadonho espetáculo da vida.
Na chave humorística, um dos seus alvos recorrentes eram, justamente, as vaidades humanas. Como exemplo, a incômoda atualidade de um conto como Teoria do medalhão, publicado em 1881, em que aparece um pai, cínico e pragmático, ensinando ao filho, justamente no dia em que este atinge a maioridade, valiosas lições de como se dar bem na vida com esforço mínimo; de como aparentar o ter ideias próprias; de como manejar as insígnias de poder social através da manipulação e da superficialidade intelectuais; de como cultivar amizades, sempre oportunas na cavação de uma nomeação ou obtenção de um cargo importante; de como lançar mãos, sempre que a oportunidade se oferecer, da cultura bacharelada e do discurso tonitruante e vazio.
Machado é o mundo. Sua galeria de tipos humanos vaidosos e frívolos é vária: picaretas e “parasitas literários”; poetas que cometem sonetos de versos com sílabas demais e outros versos com sílabas de menos; aspirantes ao parlamento; “gênios” imersos em torturante e injusto anonimato, quase sempre escritores condenados ao eterno prelo; os acometidos pela avareza e pelo amor excessivo ao dinheiro ou poder, narcisistas, etc. Há, ainda, os loucos que se pensam geniais, cujo espécime mais representativo é o médico Simão Bacamarte de O alienista (1882), tipo perfeito do mentecapto alimentado pelo saber de aparências, pertinaz na inquisição de cérebros, sempre a interpelar e perquirir, nos outros, a demência que é a dele mesmo, o que, meio tardiamente, termina por reconhecer.
Não conheço, no entanto e nesse sentido, reflexão mais profunda e ao mesmo tempo mais cínica e destruidora e implacável sobre a finitude e vaidades humanas do que as Memórias Póstumas de Brás Cubas. O “Bruxo do Cosme Velho” dá vida a um “defunto autor”, ou “autor defunto”, que não é outro senão o Brás Cubas do título, um sujeito inescrupuloso, herdeiro de larga fortuna e que viveu livre do fardo de ganhar a vida com o suor do próprio rosto, desfrutando-a, muito pelo contrário e gostosamente, a partir do suor de rostos alheios.
Ao expirar, esse cínico eterno, com a desfaçatez que já praticara em vida, e estando agora a usufruir os supostos benefícios inerentes à silenciosa eternidade, assume fumos filosofais, passando, nessa condição epistemologicamente etérea, a refletir sobre os sentidos da vida que não mais vive, ridicularizando-nos por nossas torpezas, brilhos falsos e vaidades. Os pobres mortais, ele nos ensina do além-túmulo, somos frívolos e apressados. Inutilmente apressados, posto que: -“Na eternidade, tempo é o que não me falta”. Somos, ainda, superficiais, amantes das aparências, do brilho enganador dos anéis de doutores, anéis a reverberar, enganosamente e para olhares ingleses, saberes que os seus detentores não trazem no cérebro e por aí vai. Pra terminar, o pessimismo da célebre passagem do capítulo final desse romance perturbador, o CLX, Das negativas:
“Este último capítulo é todo de negativas. Não alcancei a celebridade do emplasto, não fui ministro, não fui califa, não conheci o casamento. Verdade é que, ao lado dessas faltas, coube-me a boa fortuna de não comprar o pão com o suor do meu rosto. Mais; não padeci a morte de Dona Plácida, nem a semidemência do Quincas Borba. Somadas umas coisas e outras, qualquer pessoa imaginará que não houve míngua nem sobra, e conseguintemente que saí quite com a vida. E imaginará mal; porque, ao chegar a este outro lado do mistério, achei-me com um pequeno saldo, que é a derradeira negativa deste capítulo de negativas: – Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria.”
Uma dessas misérias, sendo, a vaidade. Penso ainda na violência do humor machadiano presente nos capítulos XC e XCI de Dom Casmurro, respectivamente chamados A polêmica e Achado que consola . A crueldade e sarcasmo com que Bentinho encara a doença e morte do amigo Manduca, findo pela ação devastadora de uma lepra, nos fazem rir e chorar. É lindo, é engraçado. Mas é, sobretudo, cruel a percepção da finitude. É desesperadora!
Relendo, por esses dias de janeiro de 2018, a obra de Ariano Suassuna – Romance d’A Pedra do Reino, de 1971, mais uma vez me vi diante do fenômeno da vaidade intelectual. O romance expõe uma miríade de histórias saborosas e surreais, vividas por centenas de personagens, espalhadas pelos ermos daqueles sertões transtornados, com suas pedras encantadas, suas miragens, seus bichos e plantas, seus castelos de matiz medieval, suas onças falantes e cantadeiras e, ainda, povoado por uma fauna humana composta por padres, cangaceiros, líderes políticos, intelectuais, filósofos, palhaços, doidos, mentirosos, etc. É, ainda, rico em episódios e peripécias, envolto em muito erotismo e situações patéticas, engendradas pela mente torturada do seu narrador-protagonista.
Os representantes do rebanho dos vaidosos da inteligência são três figuras patéticas de pobres coitados que se crêem iluminados e, de fato, vivem imersos na escuridão das fabulações que inventam pra sobreviver. São eles: Pedro Dinis Quaderna, o narrador-protagonista, que se apresenta como sendo, entre outras coisas, historiador, sebastianista, charadista, decifrador, arqueólogo, caçador, candidato a “gênio máximo da humanidade”, além de legítimo herdeiro da verdadeira coroa do Reino do Brasil, em face do caráter impostor e falacioso (assim considera) da família real portuguesa, os descendentes da família Bragança. Os outros personagens são Clemente, também historiador e filósofo e poeta de alta estirpe, claramente comunista, revolucionário, sempre sonhando com um Brasil tapuia e negro. Por último, Samuel, tão “douto” quantos os anteriores e, ainda, ultra-reacionário e conservador, sempre sonhando com a volta da família real portuguesa aos domínios legítimos das terras brasileiras, trazendo junto o catolicismo sebastianista, o poderio dos brancos europeus e por aí vai.
As intermináveis discussões e elucubrações e disputas filosóficas entre as três personagens, são responsáveis por momentos de alta voltagem humorística do texto. No Folheto XLII, intitulado “O duelo”, Samuel e Clemente, que conseguem brigar e discordar em torno de tudo que é assunto e por quase tudo, se desafiam para um duelo, de sabor medieval, sob a arbitragem de Pedro Quaderna. É a ocasião propícia, assim acreditam, para a resolução, pelo uso da força, de suas irremediáveis diferenças políticas, ideológicas, religiosas.
O ridículo da cena nos é dado pela arma com que mutuamente se atacam e que não é outra senão dois reluzentes penicos sertanejos, daqueles usados por nossas bisavós. A cena é patética, genialmente patética. Na cidade de Taperoá, onde acontece o tal duelo, podemos ver os dois grandes diascevastas – “intelectuais taperoaenses de rua” – a ostentar uma indumentária heráldica e guerreira e nobre, e em franca e aberta beligerância, a trocar solenes penicadas, agredindo-se justamente nas cabeças, pretensamente tão privilegiadas e abrigo de tanta ciência e de variados saberes. A de Clemente, o derrotado, termina quase despedaçada sob a ação do vil penico manejado por Samuel.
Na verdade, os vencedores da contenda são os próprios penicos, enobrecidos pela percepção de que, diante da fatuidade intelectual talvez sejam, muito justamente, os receptáculos ideais para guardar tanta frivolidade e tanta joia falsa.
Só lendo o Ariano para sentir o ridículo das personagens e da empáfia intelectual que ostentam, modelo universal de outros tantos luminares que andam por aí, pensando que nossos ouvidos são, também, penicos.
Meus ouvidos – já meio cansados de tanto ouvir – estão fartos das platitudes. Há, com efeito, muita superficialidade por aí com ares de grande ciência. Deparo-me, com regularidade muito acima do que seria aceitável ou mesmo desejável, com certas personagens que se comportam como se detentores fossem de toda a sabedoria gerada pelo cérebro humano ao longo dos últimos milênios. Não sei se, felizmente ou não, beneficiado talvez pela experiência sorvida ao longo de vinte e sete anos de docência, identifico logo o tipo, para isso não me sendo necessários mais do que meros e frugais cinco minutos, daqueles gastos enquanto sorvemos um inocente cafezinho ou durante o lento caminhar entre uma sala de aula e outra.
São figuras de alta voltagem narcísica, em cujo interior crepitam ardentes e vaidosas fogueiras. No reino da fantasia heurística que construíram em si e para si, para consumo privado e ostentação pública, portam-se como elementos civilizadores, responsáveis pelo “desencantamento do mundo” e remissão piedosa dos ignaros e alienados – “alienados”: eis uma palavra estruturante do léxico do tipo – postos ao alcance das lições iluminadas que professam, assim, a torto e a direito.
“Desencantamento do mundo”: o grande Max Weber não merece isso!
À arrogância intelectual que lhes é inerente costumam unir uma causa social, humanitária, inclusiva. Eis o momento em que o desencantador do mundo se arvora à condição de reformador do mesmo. Como o mundo é, efetivamente, profundamente, desigual, injusto e complicado, o iluminado intelectual (às vezes também arrivista), quando colocado à esquerda do espectro ideológico, costuma chamar para si a responsabilidade pela mobilização das consciências em torno da necessidade de transcender a realidade cruel e impiedosa. Quando colocado à direita do referido espectro, parte logo pra violência pura e brutal. Nos dois casos, à direita ou à esquerda, buscam a conversão dos gentios e não admitem as heresias de quem não lhes segue o credo informado por proselitismos, frases feitas e de efeito, chavões, doutrinação, etc. São contumazes no uso de expressões do tipo:
– Você precisa entender que as relações sociais, as configurações…
– É o poder simbólico (pobre Bourdieu, itálico meu)
– Não sei como vc. se interessa tanto por uma coisa tão insignificante e menor e alienante como o futebol
– Isso é caldo de cultura.
As frases de efeito são, com efeito, grandes libertadoras do fardo de pensar.
Mas é tudo tão distante da seriedade, da parcimônia, do rigor e da maturação de ideias exigidos (as) pelo labor intelectual sério e relevante. A inteligência precisa de tempo e de leituras em câmera lenta. A construção de textos pede calma e moderação e muita transpiração, como dizia o grande João Cabral de Melo Neto. Pede humildade diante da página em branco. Não combina com a publicação semestral de centenas de artigos que só servem para engordar o Lattes.
É isso. Então, pobre de mim, sempre com enorme dificuldade pra entender certos autores; sempre a pedir socorro a Adeildo Pereira, Mestre e amigo de todas as horas, todas as vezes em que me debato, diante da construção textual, com as agruras do meu eterno português ruim. Como se fosse pouco, ainda adoro ouvir cantores populares, que os doutos chamam de “brega”; não perco um só jogo da Raposa e – eis a suprema manifestação da minha inópia intelectual – levo meus filhos menores ao Estádio. E não gosto muito do politicamente correto. Convenhamos: é muita alienação numa só pessoa.
Fico por aqui. A construção dessas linhas, tão canhestramente alinhadas, deu-me uma vontade danada de reler a Crônica das lavadeiras, do Graciliano Ramos.