O artigo escrito por Rebecca Tarlau e Kathryn Moeller, em maio desse ano turbulento de 2020 e intitulado “O CONSENSO POR FILANTROPIA: Como uma fundação privada estabeleceu a BNCC no Brasil”, investiga e demonstra como nosso sistema de ensino público, através da elaboração da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), entrou no debate de políticas públicas no Brasil e, entre 2015 e 2017, se tornou a mais importante iniciativa de reforma no Ministério da Educação (MEC).
A redação e a aprovação da Base Nacional Comum Curricular, que ocorreram entre 2014 e 2017, oferece um caso contemporâneo interessante sobre o papel de fundações privadas e corporativas na formulação de políticas educacionais no Sul Global.
Nenhuma informação deste artigo é um segredo: a Fundação Lemann é muito clara com relação ao seu papel na criação do Movimento pela Base e no apoio à redação da Base Nacional Comum Curricular (BNCC).
Esse processo acelerado de elaboração e aprovação de uma política pública resultou da prática do consenso por filantropia, quando recursos materiais, produção de conhecimento, poder da mídia e redes formais e informais são usados por fundações privadas para obter um consenso entre múltiplos atores sociais e institucionais em apoio a uma determinada política pública.
Em outras palavras, essas fundações não impõem políticas públicas aos governos; em vez disso, elas tornam “técnicos” os debates políticos mais importantes (como a questão premente da equidade educacional, por ex.) e, em seguida, influenciam a formação de um consenso entre altos funcionários governamentais sobre quais políticas devem ser adotadas.
No caso da BNCC, o artigo argumenta que essa influência filantrópica não é simplesmente um esquema neoliberal para maximizar lucros, mas sim parte de um movimento de lideranças corporativas e fundações privadas em todo o mundo para angariar poder e reconstruir a educação pública à sua própria imagem.
Embora esse jogo seja muitas vezes participativo e amplamente aceito, corporações e fundações só conseguem desempenhar esse papel graças ao seu tremendo poder econômico (um subproduto direto da desigualdade econômica e política global) e aos cortes sistemáticos de recursos na esfera pública.
3 ARGUMENTOS QUE ESSE ARTIGO NOS OFERECE A PENSAR
1 – O trânsito de políticas educacionais através das fronteiras está ocorrendo por meio de redes privadas e corporativas. A análise do artigo demonstra como o papel da Fundação Lemann, no caso da BNCC no Brasil, espelhou o papel da Fundação “Gates” no caso do Common Core nos EUA. Fundações da América do Sul estão aprendendo diretamente com as fundações da América do Norte como influenciar políticas educacionais
2 – As fundações privadas só conseguem desempenhar esse papel devido, de um lado, a seu tremendo poder econômico, um produto direto da economia política global desigual; e, de outro, aos cortes sistemáticos de recursos na esfera pública. Essas fundações não impõem políticas públicas aos governos. Em vez disso, “tornam técnicos” os debates políticos de alto impacto em questões urgentes de equidade e qualidade educacionais. Em seguida, apoiam funcionários do Estado na busca de um consenso sobre as políticas a serem adotadas, organizando redes, patrocinando pesquisas e realizando seminários educacionais. Elas também oferecem um suporte econômico e organizacional para a implementação dessas políticas. Trata-se de uma explícita estratégia para colocar a nação num caminho específico e reunir poder político — uma estratégia que provavelmente vai tornar-se cada vez mais comum entre fundações privadas e corporativas.
3 – Não se trata simplesmente de uma tentativa de privatizar a educação pública e obter um lucro rápido. Por um lado, essas iniciativas são uma tentativa de manobrar poder, uma estratégia para encaixar as fundações na esfera pública. Dessa perspectiva, a BNCC era um meio para atingir um fim: tornar-se o mais importante ator educacional no Brasil. Por outro lado, as intervenções educacionais da Fundação Lemann são uma tentativa de refazer a esfera pública à sua imagem e semelhança.
Vale destacar que segundo as investigações presente no artigo, outros atores em políticas públicas, como sindicatos, universidades públicas, movimentos sociais contenciosos, foram considerados como barreiras a essas intervenções educacionais da Fundação Lemann.
Leia o artigo completo aqui. Recomendação do professor Marcos Martins (UFSCar – Sorocaba).
EXTRA
Livro – “Educação contra a barbárie: por escolas democráticas e pela liberdade de ensinar” (2019).
Organização de Fernando Cassio, atualmente professor na Universidade Federal do ABC (UFABC)
O livro tem ensaios que refletem essas e outras questões, e que reúne um timaço: Alessandro Mariano, Alexandre Linares, Ana Corti, Aniely Silva, bell hooks, Bianca Correa, Bianca Santana, Carolina Catini, Catarina De Almeida Santos, Daniel Cara, Denise Botelho, Eudes Baima, Isabel Frade, José Marcelino de Rezende Pinto, Maria Caramez Carlotto, Marina Avelar, Matheus Pichonelli, Pedro Pontual, Rede Brasileira de História Pública, Rede Escola Pública e Universidade, Rodrigo Ratier, Rogério Junqueira, Rudá Ricci, Sergio Haddad, Silvio Carneiro, Sonia Guajajara e Vera Jacob.