ONU: Quando não mente, Bolsonaro falta com a verdade

Por Gilberto Maringoni; Com vídeo do Meteoro Brasil

ONU: Quando não mente, Bolsonaro falta com a verdade – por Gilberto Maringoni; Com vídeo do Meteoro Brasil

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Reprodução – internet

O novo discurso de Jair Bolsonaro na Assembleia Geral da ONU deve ser examinado levando-se em conta alguns parâmetros:

1. O PRESIDENTE BRASILEIRO não é mais novidade na cena global e sofreu vários reveses internacionais ao fim de seu segundo ano de mandato;

2. O ISOLAMENTO COLHIDO interna e externamente nesse período obrigou seu governo a deixar de lado – não se sabe até quando – o tosco discurso golpista interno e anticomunista anacrônico para o público externo. Nos dois planos, Bolsonaro busca ampliar sua bolha extremista;

3. NA CONTA DESTE ISOLAMENTO estão quase 140 mil mortos pelo Covid-19, as queimadas na Amazônia e no Pantanal, seu negacionismo científico, além da perspectiva de termos em 2021 um novo repique recessivo, fruto – além da pandemia – do terraplanismo de sua equipe econômica;

4. SEU PRINCIPAL PONTO de apoio internacional – Donald Trump – enfrenta séria pedreira na campanha eleitoral e pode ser derrotado pelo candidato democrata;

5. BOLSONARO FALOU virtualmente, de casa. Não se submeteu a eventuais constrangimentos que sua presença física pudesse sofrer diante de manifestantes ou mesmo de representantes de outros países. Isso pode ter contribuído para o tom menos exaltado, comparado ao discurso de 2019.

TENDO EM CONTA TAIS PRESSUPOSTOS, vale dizer que embora o enfoque de direita extrema perdure nos 14 minutos de fala, a ênfase geral foi de buscar sensibilizar uma opinião pública maior do que a direita delirante, que dá sinais de recuo em vários países. Maurício Macri perdeu as eleições, as tentativas de se derrubar o governo de Nicolas Maduro fracassaram, Matteo Salvini foi expelido do governo italiano, Viktor Orbán enfrenta oposição em casa e a questão racial/social aflorou no centro do Império. O difuso plano de se criar algo como uma Internacional Reacionária fracassou. Isso tudo, sem contar o giro intervencionista na economia que vários governos liberais foram forçados a fazer neste meio ano de pandemia.

Mesmo assim, Bolsonaro não nega a própria natureza. Sua fala não teve o tom histriônico de Guerra Fria rediviva, como no anos passado, mas buscou claramente apontar culpados outros para as acusações que recebe. Em alguns momentos mentiu claramente – como ao dizer que as parcelas do auxílio emergencial “somam aproximadamente mil dólares para 65 milhões de pessoas” – e em outros faltou com a verdade.

ASSIM, QUALQUER PROBLEMA com o descontrole sanitário deve ser cobrado dos “27 governadores” que ficaram responsáveis “por decisão judicial” por todas as medidas de “isolamento e restrições de liberdade”. A imprensa “politizou o vírus, disseminando pânico entre a população”. O “Brasil está aberto para o desenvolvimento de tecnologia de ponta e inovação (…) e da tecnologia 5G, com quaisquer parceiros que respeitem nossa soberania, prezem pela liberdade e pela proteção de dados” (entendeu, China?). Os incêndios florestais são causados pelo “caboclo e o índio [que] queimam seus roçados em busca de sua sobrevivência, em áreas já desmatadas”. O “criminoso derramamento de óleo” em nossas costas foi causado – claro! – pela “ditadura bolivariana” da Venezuela (sem que nenhuma evidência disso seja apresentada). E ele não fica por aí. “No campo humanitário e dos direitos humanos, o Brasil vem sendo referência internacional” (novamente, nenhuma evidência é citada). E tome autoelogios às reformas da Previdência, tributária, administrativa e do saneamento. Se não atravessássemos um inverno siberiano de desgraças sucessivas, a peça seria quase anedótica.

Como gerente de um país que se desindustrializa a passos largos, exaltou a agricultura em frases que caberiam na boca de um coronel da República Velha (“Estamos abertos para o mundo naquilo que melhor temos para oferecer, nossos produtos do campo”). E sobre as queimadas, tudo não passa de “uma das mais brutais campanhas de desinformação” que tem por “objetivo prejudicar o governo e o próprio Brasil”.

SEU GOVERNO FOI UM ROSÁRIO DE VIRTUDES: deu assistência a “mais de 200 mil famílias indígenas”, ouviu profissionais de saúde, dotou os hospitais de “meios para atender aos pacientes de Covid”, tem “tolerância zero com o crime ambiental”.

Por fim, o puxassaquismo explícito aos duvidosos “projetos de paz e prosperidade” de Donald Trump, algo capaz de fazer corar pé de mamona. E o inevitável fecho carola, para sua base: “O Brasil é um país cristão e conservador e tem na família sua base”.

No fundo, é um discurso extremamente defensivo, que não busca argumentos que o amparem diante de desgastes crescentes no cenário externo. O capitão fala para o público interno. Não é à toa que quase 80% do tempo tenha sido gasto para explicar problemas brasileiros e, no pouco que sobrou para falar do mundo, o sentido foi o de gestor de país periférico. Ou seja, para dizer que somos pouso seguro para o capital externo. O Brasil da extrema-direita não reflete sobre o mundo, é figura passiva para além da vizinhança.

É notável que as frases da alocução são construídas a partir de uma realidade paralela, sem que explicações maiores sejam dadas. Uma espécie de mundo mágico bolsonarista, em que a repetição de falsas verdades em tom – repetindo – menos exaltado do que há doze meses tenta justificar o injustificável. Embora as pesquisas apontem um sólido apoio interno – e é isso que interessa ao presidente – seus pontos de apoio externos não devem ter se movido com o palavrório na ONU. Ao contrário, nesse ambiente sua credibilidade é cadente.


GILBERTO MARINGONI DE OLIVEIRA é professor adjunto de Relações Internacionais e membro do corpo docente do Programa de pós-graduação em Ciências Humanas e Sociais (PCHS) da Universidade Federal do ABC (UFABC). É também doutor em História Social pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (2006), graduado pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP (1986) e jornalista. Tem experiência na área de História, com ênfase em América Latina contemporânea, História da imprensa e História do Brasil Império. Tem estudos focados nos temas: relações internacionais, modelos de desenvolvimento e comunicações. É autor de doze livros, entre eles A Venezuela que se inventa – poder, petróleo e intriga nos tempos de Chávez (Editora Fundação Perseu Abramo, 2004), A revolução venezuelana (Editora Unesp, 2009), Angelo Agostini, A imprensa ilustrada da Corte à Capital Federal, 1864-1910 (Devir, 2011) – finalista do Prêmio Jabuti 2012, da Câmara Brasileira do Livro, categoria biografia – e Direitos humanos, imagens do Brasil (Aori, 2010). Foi bolsista do Programa Nacional de Pesquisas Econômicas (PNPE) no Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), entre 2008 e 2011, e editor da revista Desafios do Desenvolvimento, da mesma instituição, entre 2011 e 2012. É membro do Grupo de Reflexão sobre Relações Internacionais (GR-RI) 
(Texto informado pelo autor)


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