Com a virada na Georgia, parece que a vitória de Biden no colégio eleitoral está selada. Trump promete incomodar o quanto puder – e muito do Partido Republicano decidiu se colocar ao lado dele. Por exemplo, Ted Cruz, o senador que, embora ultradireitista, tanto relutou em apoiar Trump em 2016, agora está alegremente divulgando mentiras e alimentando a tese da fraude.
Obstrução pelas vias institucionais, agitação permanente de sua base radicalizada com reforço das teorias conspirativas, sabotagem: é isso que o governo Biden pode esperar.
Trump sai forte da eleição, mesmo derrotado – e quem imaginava que haveria uma restauração triunfal da democracia liberal na matriz do Império já pode ir tirando o pônei da garoa. Trump é o sintoma de uma crise estrutural do sistema e nem como sintoma está desaparecendo do cenário.
Traduzo abaixo o artigo do historiador Adam Tooze, um liberal honesto e inteligente, publicado em The Guardian sob o título “Trump não foi repudiado”. O link para o artigo em inglês está nos comentários.
“O que quer que resulte da eleição de 2020 dos Estados Unidos, uma coisa é certa: ela não produziu um repúdio abrangente a Donald Trump. O choque de 2016 não foi desfeito. Não há nada no resultado para expiar a humilhação dos últimos quatro anos, a vulgaridade vergonhosa e a ilegalidade. Mesmo que Joe Biden seja finalmente empossado como presidente, será difícil seus apoiadores se conciliarem com o fato de que Trump não foi vaiado em desgraça para fora maior palco da política mundial. Esta não é apenas uma verdade inconveniente para os Estados Unidos; ela também tem implicações para o resto do mundo.
“Em vez de uma rejeição a Trump, os resultados da eleição rearranjam a configuração finamente equilibrada e profundamente polarizada que prevaleceu na política americana desde os dias de Bill Clinton, nos anos 1990. Como em 2016, Trump perdeu na votação geral, mas continua a comandar uma maioria esmagadora nas pequenas cidades e nas áreas rurais da América branca. Apesar de sua hostilidade injuriosa para com os imigrantes, Trump obteve ganhos notáveis entre o grupo bastante diverso grosseiramente agrupado sob o rótulo de ‘latinos’. Surpreendentemente, ele se deu bem não apenas nas comunidades anti-socialistas de cubanos e venezuelanos em Miami, mas também entre os mexicanos-americanos no Texas. E continua a obter a maioria dos votos de mulheres e homens brancos de todas as origens.
“Nesse ínterim, ninguém, dentro ou fora do país, deve ter ilusões sobre a dimensão do bloco eleitoral nacionalista e xenófobo. O GOP [Partido Republicano] entrou no território de Viktor Orbán e Recep Tayyip Erdoğan e, no entanto, comanda um apoio sólido. Na verdade, para uma minoria considerável do eleitorado, é precisamente a estridência de Trump e do Partido Republicano que atrai. Eles amam a agressividade de Trump e sua alegre chacina de vacas sagradas liberais. Agora que ele modelou o estilo, muitos outros vão querer segui-lo.
“Em um país dividido, praticamente todas as facetas da realidade são vistas através de lentes partidárias. Não sem razão, os democratas tentaram fazer da eleição um referendo sobre a forma como Trump lidou com a crise do coronavírus. Mas essa não foi uma carta vencedora. Quase metade dos americanos não concordou que o desempenho desastroso e irresponsável de Trump o desqualificou para a presidência. Isso não é um bom sinal para o esforço de controle da doença, que seria a primeira tarefa de um governo Biden.
“Se não houver vontade coletiva para adotar ação preventiva, tudo continuará a depender de uma bala mágica: uma vacina. Mas mesmo isso não garante sucesso. Pesquisas de opinião sugerem que não mais do que uma fraca maioria concordará em ser vacinada, sendo os americanos com tendência republicana particularmente resistentes. A implicação é que os EUA vão vacilar, não controlando efetivamente o surto e passando por repetidos bloqueios. O impacto sobre as comunidades e pequenos negócios provavelmente será devastador.
“Mesmo supondo que o vírus possa ser dominado, um governo Biden enfrentaria uma batalha política difícil. Seus formidável inimigo é o Partido Republicano no Congresso, liderado por Mitch McConnell, o sulfuroso chefe dos republicanos do Senado. Antes da eleição, aproveitando uma onda de otimismo excessivo sobre o resultado provável, Nancy Pelosi [deputada democrata e presidente da Câmara] fez um jogo perigoso. A presidente da Câmara defendeu um segundo pacote gigantesco de estímulo, superior a US$ 2 trilhões, mas nenhuma ‘onda azul’ levou os democratas ao controle do Congresso.
“Agora, com maioria reduzida, Pelosi terá que voltar à mesa de negociações para barganhar com McConnell. Para o prazer de Wall Street, ele anunciou que está disposto a fazer um acordo, mas este é um sinal sinistro. É mais ou menos garantido que qualquer pacote com o qual McConnell concorde não enfrentará a crise social que enfrentam dezenas de milhões de americanos desempregados e cidades e estados em dificuldades em todo o país. E ainda, para salvar a economia da catástrofe, os democratas podem muito bem ser forçados a aceitar os termos de McConnell.
“Por mais necessário que seja, qualquer acordo com McConnell deve ser considerado uma pílula de veneno. Cada item da agenda progressista de Biden – saúde, atendimento à infância e educação – estaria em leilão. O mundo em geral ficaria satisfeito em ver um governo Biden reverter a decisão de Trump de sair do acordo climático de Paris. Mas qualquer conversa sobre um New Deal Verde provavelmente seria interrompida. Os republicanos gostam de falar sobre infraestrutura, mas em quatro anos no cargo, Trump nunca apresentou um programa de investimento. Se os republicanos do Senado forem conquistados para um plano de energia verde de Biden, certamente ele será feito sob medida para o lobby empresarial. Não há nenhuma chance de que o Senado conceda a Biden a ratificação formal do acordo de Paris, uma vitória legal negada a Barack Obama como foi a Bill Clinton sobre o protocolo de Kyoto.
“Isso deixaria os Estados Unidos incapazes de se comprometer com credibilidade com a emissão zero de carbono. O progresso da tecnologia e a queda do custo das energias renováveis podem ser um trunfo, mas uma solução técnica só pode avançar até certo ponto. A descarbonização profunda pode, no devido tempo, abrir as portas para um novo modelo de crescimento verde. Mas, a médio prazo, requer uma mudança estrutural dolorosa que terá de ser iniciada de cima para baixo.
“Qualquer progresso nos próximos quatro anos dependeria de compromissos administrativos improvisados e dolorosos. O governo Obama deu uma aula magistral tanto sobre o potencial quanto os limites desse tipo de governança. Uma administração Biden sem dúvida se beneficiaria com essa experiência, mas enfrentaria o que pode ser o legado mais formidável de Trump: um sistema de tribunais tomado em todos os níveis por juízes pró-negócios e anti-regulamentação. Em um único mandato, Trump conseguiu nomear um quarto dos juízes federais, que cumprirão sua agenda nas próximas décadas.
“Com obstruções em todas as direções, não deveríamos nos surpreender se a liderança de fato na política econômica continuar a repousar não no Poder Executivo eleito, mas no Federal Reserve. O presidente do Fed, Jay (Jerome) Powell, tem sido muito complacente. E, do ponto de vista do resto do mundo, a liderança do Fed pode não ser ruim. Dólares baratos aliviam a pressão sobre a economia mundial. Mas existem limites distintos para o que qualquer banco central pode fazer em resposta ao choque econômico causado pelo vírus. E há efeitos colaterais seriamente tóxicos de uma política monetária infinitamente expansionista, notadamente no aumento de bolhas especulativas que beneficiam a minoria afortunada que possui ações.
“O que o Fed não pode oferecer é o que os EUA precisam desesperadamente: uma grande atualização nos serviços públicos, começando com a máquina eleitoral, atenção à infância, atenção à saúde e infraestrutura do século XXI. Sem isso, o impasse de uma sociedade americana dividida e de uma política disfuncional continuará. Essa é a perspectiva que mais deveria preocupar o resto do mundo. Longe de fechar o livro dos últimos quatro anos, mesmo que haja uma mudança de titular na Casa Branca, esta eleição ameaça confirmar e consolidar o venenoso status quo”.