Eu não utilizarei esse espaço para repetir que a ditadura militar brasileira foi ruim, porque eu não falo com imbecis. Contudo, há um entendimento pulverizado de que os únicos inimigos da ditadura eram os comunistas e que, por isso, a violência política se dava focalizando uma “esquerda branca” e não teriam nos negros alvos privilegiados. Desprende-se desta interpretação de que a luta contra a ditadura e por sua memória é “problema dos brancos” e, ainda mais, que a democracia mata mais negros do que a ditadura matou. Esse são argumentos detectáveis em diversas conversas.
Sobre isso, é sempre bom lembrar algumas coisas muito bem documentadas:
1. A ditadura militar brasileira desprezava os movimentos negros e via neles um alvo de cooptação dos comunistas. A dissertação da Karin Sant’Anna Kössling ” As lutas anti-racistas de Afro-Descendentes sob vigilância do DEOPS/SP (1964-1983)” demonstra como a vigilância produzida pelo DOPS via em nós, negros, “alvos de fácil cooptação para a ideologia socialista”.
2. Mesmo desprezando-nos, os equipamentos de vigilância ditatorial temiam que a multiplicação de clubes negros, movimentos de associação e o aumento do apreço pela estética black power produzisse distensões no “sentimento nacionalista” tão desejado pelo povo brasileiro. A tese do Amilcar Pereira “O Mundo Negro”: a constituição do movimento negro contemporâneo no Brasil (1970-1995)” demonstra bem esse misto de desprezo e preocupação que a “poluição negra” poderia fazer na nação brasileira, do ponto de vista dos militares.
3. No mesmo caminho: aquilo que conhecemos como Movimento Negro Contemporâneo, suas conquistas: ações afirmativas, alterações legislativas, ganho generalizado na expectativa de vida negra no Brasil; é fruto da democracia e ganha fôlego somente após a promulgação da constituição e 1988. Não é coincidência.
4. A formação de Esquadrões da Morte na década de 1970: membros da corporação policial que utilizam do assassinato extra-legal como forma de terrorismo é o fruto da ditadura e das novas relações urbanas de poder surgidas no Brasil pós anos 1960. Essa nova maneira de “matar e ameaçar matar para ordenar” visava o tinha fronteiras difusas: ora aterrorizava os comunistas e suas famílias, ora atacava as favelas e mocambos. Para quem tiver interesse sobre como se dava essa “faca de dois gumes” do assassinato policial, sugiro pesquisar dois nomes: Sérgio Paranhos Fleury e Nego Sete.
5. Por fim, a ideia de que comunismo e, em geral, os movimentos socialistas brasileiros, são exclusividade das classes médias brancas talvez tenha sido a maior vitória ideológica dos militares no período pós-64. É de interesse daqueles que nos amassam passar a ideia de que a luta contra o poder é o privilégio de playboys descolados do “Brasil real” ou “Brasil profundo” ou “zapistão” como alguns ressentidos disfarçados de representação intelectual do suposto brasil popular tentam espalhar por aí.
Não deve ser por coincidência, também, que quando o Racionais MC’s, grupo negro, periférico e maior novidade estética de nossos tempos, resolveu fazer sua única música focada na biografia de um homem publico, eles escolheram Carlos Marighella, homem nordestino, negro, comunista e assassinado pela ditadura.
Que os poderosos nos matem é da vida, as desigualdades são reais e a violência quase sempre é inevitável. Que nós concordemos com o argumento de nosso algoz, isso sim é um problema.