Luis Felipe Miguel
Fiquei triste com a Lilia Schwarcz tendo que se retratar daquele jeito. Mostra como é forte a pressão para a anulação do debate.
Em vez do engajamento com os argumentos dela, para apoiá-los ou refutá-los, o que se viu, uma vez mais, foi o uso raso da noção de lugar de fala para promover silenciamento.
“Lugar de fala” significa que todo discurso é situado, isto é, nenhum discurso é independente da posição social do falante. É um lembrete contra percepções idealistas das trocas discursivas. Faz exigir pluralidade de vozes, mas não aponta – da forma como entendo – para a substituição de um monopólio de fala por outro ou para o enclausuramento de grupos em cidadelas imunes ao debate.
Isso vale para Lilia Schwarcz, para Beyoncé, para todos nós. Mas, na polêmica atual, parece que Schwarcz se limita a ser branca e Beyoncé, a ser negra. De uma, é apagada a condição de pesquisadora, que a credencia ao debate. Da outra, a estratégia comercial-midiática, fazendo com que seu discurso tenha que ser lido como 100% puro e desinteressado.
Para deixar bem estabelecido meu “lugar de fala”, eu não gosto de pop e tenho zero interesse na Beyoncé. Só agora, vejam só, descobri que ela tinha se tornado um ícone incriticável.
Mas não creio que ícones incriticáveis façam bem a ninguém.
No caso, a ideia de lugar de fala parece que foi misturada com um tanto de “não mexam com minha ídola”. A artista preferida é alçada, assim, a uma posição em que a única resposta aceita é o aplauso incondicional.
Mesmo o texto de Judicaelle Irakoze, traduzido para o português, que toca, a meu ver com bastante competência, em muitas questões dignas de atenção, faz questão de antes prestar cuidadoso tributo à “minha rainha Beyoncé”, “poderosa artista transcendente”.
Essa politização da tietagem me parece também reveladora de algo, que é a pressão para ler “empoderamento” como narrativa de sucesso dentro do sistema: “vencer na vida”. Assim é Beyoncé, conhecidíssima como a noite de Paris, poderosíssima como a espada de uma samurai, riquíssima, estrela de primeira grandeza do star-system da música pop.
Mas, enquanto ela tem um contrato milionário para fazer propaganda para a Pepsi, outras marcas da mesma empresa continuavam associadas a imagens racistas. E as trabalhadoras e trabalhadores, negros e também brancos, da Pepsico, como andam?
Lilia Schwarcz
Passei as última 48 horas praticando a escuta. Conversei com pessoas amigas e críticas, e rascunhei essa mensagem inúmeras vezes. Não deveria ter aceito o convite da Folha, a despeito de apreciar muito o trabalho de Beyoncé; seria melhor uma analista ou um analista negro estudiosos dos temas e questões que a cantora e o filme abordam. Ao aceitar, não deveria ter concordado com o prazo curto que atropela a reflexão mais sedimentada. Deveria também ter passado o artigo para colegas opinarem. Não ter dúvidas é ato de soberba. Também não deveria ter escrito aquele final; era irônico e aprendi que é melhor dizer, com respeito, do que insinuar. A primeira parte do artigo eleva a obra de Beyoncé, o que não é favor algum: trata-se de uma celebração da experiência negra realizada por uma das maiores artistas do nosso tempo. Apesar da minha carreira na área, não se está imune à dimensão do racismo estrutural e da branquitude. Errei e peço desculpas aos feminismos negros e aos movimentos negros com os quais desenvolvi, julgo eu, uma relação como aliada da causa antirracista. Assumo a minha responsabilidade pelo artigo e não pretendo vencer qualquer discussão. Quando uma situação dessas se monta, todos perdem; tenho consciência. Penso que a Folha de S Paulo deveria assumir sua responsabilidade, também, pois é de sua editoria o título e o subtítulo que não usam minhas palavras. Não falo em “erro”, tampouco que Beyoncé “precisa entender” ou que usa “artifício holliwodyanno” no meu artigo. Agradeço, assim, aos que fizeram críticas construtivas, sigo aprendendo com elas