Na batalha das idéias, principalmente nas redes, a direita frequentemente utiliza como cavalho de batalha ideológico contra os socialistas a defesa da livre-iniciativa, do empreendedorismo, do dinamismo proporcionado pela concorrência e pela busca da eficiência. Tal estratégia vem rendendo frutos, melhor cristalizados na ascenção de figuras “gestoras” fake ao estilo João Dória e Nelson Marchezan, surfando na onda capitaneada pelo presidente francês Macron, ou, ainda, na popularização de ideias conservadoras do MBL entre a juventude.
Ao rebater este discurso, a esquerda enfatiza a prevalência dos valores coletivos e solidários frente ao individualismo egoísta e à competitividade meritocrática. Corretamente, faz questão de destacar o público em detrimento do privado, a coletividade acima do indivíduo atomizado e sem vínculos sociais, imaginado pelos liberais.
Tudo muito verdadeiro. Mas é comum que, concomitantemente, deixemos de notar a incongruência enorme desta retórica frente ao liberalismo realmente existente, perdendo a oportunidade valiosa de abrir espaços para fora de nossa bolha dos já convencidos.
Ocorre que a esquerda morde a isca quando desdenha da importância de retirar de seus inimigos o monopólio de valores favoráveis à iniciativa individual e ao senso de oportunidade e risco, passando, por vezes, a impressão de não ver problema em se associar à imagem de burocratismo, comodismo, estagnação, falta de dinamismo e eficiência.
A bem da verdade, os socialistas fariam um grande bem em incorporar um ethos DIY (do it yourself) típico do punk rock ou, ainda, algo semelhante ao conceito de “fanshen” (“contar com suas próprias forças”), mote utilizado na Revolução Chinesa como estimulo à iniciativa própria das massas camponesas em seu processo de reforma agrária. Devemos recuperar o simbolismo do dinamismo e do espírito inovador, retirando-os das vozes dos grandes capitalistas.
É preciso, além de destacar o coletivo, o público e a igualdade social, dizer altivamente que os verdadeiros defensores da iniciativa e da concorrência no Brasil se situam à esquerda do espectro político. Apesar de toda a retórica, os neoliberais brasileiros defendem os MONOPÓLIOS PRIVADOS e toda a ineficiência e estagnação que os acompanham!
Explico: o processo de privatização brasileiro associado à abertura comercial e financeira subordinada às “cadeias produtivas de valor” mundiais conduziu a uma ainda maior centralização e concentração do capitalismo brasileiro. Nossa economia não é ditada pela lógica da livre-concorrência entre empresas buscando eficiência, baixos preços e inovação, mas pela dominação de cadeias produtivas inteiras por corporações transnacionais surgidas com a reestruturação capitalista dos anos 70. São verdadeiros conglomerados globais envolvendo indústria, comércio, serviços e finanças, sob dominância desta última, em um único T-Rex, fazendo com que os antigos cartéis e trustes da época do imperialismo estudada por Lenin, Rosa Luxemburgo, Bukharin, Hilferding, etc. no início do século XX, pareçam brincadeira de criança.
O resultado do avanço do neoliberalismo dos anos 90 foi a quebradeira de inúmeras pequenas e médias empresas, muitas delas fornecedoras das antigas estatais, principalmente no setor industrial. O que explica porque nas grandes regiões metropolitanas o desemprego chegou a atingir ¼ da população economicamente ativa. Parques industriais estratégicos como aquele envolvendo o setor químico – um dos nossos maiores déficits comerciais atuais — foram desmantelados, com inúmeras fábricas migrando para o exterior. A propalada onda de investimentos externos proporcionada pela liberalização se direcionou basicamente ao capital de curto prazo interessado na ciranda financeira (aumentando nossa vulnerabilidade externa e gerando crises cambiais violentas, como aquela de 1999) e aos investimentos em fusões e aquisições, sem implicar em elevação da taxa da formação bruta de capital fixo (na verdade, diminuiu!) nem investimento em pesquisa, tecnologia e novas plantas industriais.
Desta forma, consolidou-se uma estrutura extremamente oligopolizada nos principais ramos da economia brasileira – compare nosso setor bancário antes e depois da onda neoliberal-, associada a uma macroeconomia de juros altos e câmbio pouco competitivo, redundando justamente no OPOSTO do que a direita brasileira alega defender: preços administrados, fora do cálculo de mercado, muito acima da média de países com renda semelhante à nossa; baixa concorrência; pouco protagonismo de pequenas e médias empresas (justamente aquelas mais intensivas em trabalho); baixo nível de desenvolvimento tecnológico-científico; dependência de produtos importados para o processo produtivo; especialização regressiva do capitalismo brasileiro, com grandes empresas nacionais concentradas em setores ricos em matérias-primas (indústria alimentícia, extração mineral, construção civil etc); cadeias produtivas desnacionalizadas e cheias de lacunas; baixíssimo estímulo ao investimento privado e público, favorecendo o entesouramento do dinheiro; sucateamento da infraestrutura logística e de transportes (para o qual contribui enormemente o lobby do oligopólio da indústria automobilística dominada por transnacionais), etc.
Ao contrário, a experiência internacional– seja a dos países ditos “socialistas de mercado” como China e Vietnã, seja a dos “tigres asiáticos” (Coreia do Sul, Cingapura, etc.), que apostaram numa industrialização soberana comandada pelo Estado– indica que a melhor maneira de fomentar a concorrência, o desenvolvimento industrial e a propagação do micro, pequeno e médio capital se dá mediante a forte presença de empresas estatais de grande porte em aliança com o planejamento macroeconômico e macrossocial por parte do bicho-papão chamado Estado.
Ou seja, caso queiramos que o Brasil realmente conheça concorrência, livre iniciativa e estímulo aos novos capitalistas, precisamos que o Estado seja poderoso e eficiente, a fim de quebrar os monopólios privados e o rentismo, verdadeiros entraves ao desenvolvimento das forças produtivas. Assim como o Estado varguista pós 1930 teve de assumir certa autonomia em relação à principal fração da burguesia, confrontando-se violentamente com as elites paulistanas, para que o Brasil deixasse de ser um fazendão, hoje, para que o capitalismo possa cumprir algum papel modernizador e progressivo no país, é necessário que as forças socialistas, populares e democráticas – a esquerda, em suma – esteja à frente do poder político.
Denuncie, portanto, com convicção, aquele seu colega pentelho repetidor de platitudes liberais pelo que ele de fato é: inimigo da concorrência e apologista dos oligopólios corporativos!
Paradoxal? Aparentemente sim. Mas quando a gente lembra que os capitalistas brasileiros conviveram tranquilamente com a escravidão, desprezavam a ética do trabalho como coisa de besta falante, se opuseram à industrialização do país, defendem o latifúndio e combatem a democratização da propriedade fundiária, patrocinaram golpes militares de maneira histérica ao longo dos anos 50 e 60 e sempre viveram de isenções fiscais e outros privilégios à custa do Estado, você perceberá que há uma grande coerência: são parasitas que preferem ser sócios de quinta categoria das grandes potências do que se aliar ao seu próprio povo para construir um país decente.
Ou, mais na lata, como diziam os antigos: são inimigos do povo.